terça-feira, 10 de outubro de 2017

A CARTA

Lembro me de um episódio, de um colega de turma, que escrevendo uma redação para os avós, começava dizendo: “Quando era pequeno nasci”, ponto. Lembro-me das gargalhadas sonoras dos colegas da turma, quando o Fábio leu a carta, ou quando a professora fez uma piada com ela, não sei ao certo, afinal, o que melhor me ficou na memória, foi o meu próprio riso.

A carta, de resto, é uma carta de amor aos avós que só uma criança, no seu pouco léxico, sabe escrever. De agradecimento aos que o acompanharam no primeiro ciclo da sua vida.

CRÓNICA DE PEDRO MONTERROSO

Hoje, visto de cá, desta varanda sobranceira à infância, olhando para esse pátio de crianças, sentado sob dedicatórias e redações que haveriam de atravessar todos estes anos até às minhas mãos presentes, entendo muito melhor essa frase do meu amigo, que para mim ilustra melhor todo esse “livro de finalistas”, do fim do primeiro ciclo do ensino básico, em 1994. Tinha 10 anos.

Dizer que se nasce quando se é pequeno, é muito mais que um riso, envolve um recurso de estilo, que só um poeta, ou uma criança sabe usar. Nascer é uma questão biológica, ponto. Mas também é uma questão filosófica, reticências… Não se nasce quando se nasce, temos de rasgar o ventre da própria vida para ver o mundo cá fora. Uns nascem antes, quando são pequenos, outros mais tarde, adolescentes, outros só numa fase adulta. Outros, nunca nascem e vagueiam pela vida, sem nascerem. Creio que as situações mais traumáticas, ajudam a que uma pessoa nasça. No meu colega, o distanciamento dos pais, que se encontravam noutro país, descreve na carta, que só poderia ver uma ou duas vezes no ano, fê-lo nascer em pequeno e escrever este agradecimento aos avós, com que vivia.


No meu caso, não me lembro de ter nascido. Ainda. Vou nascendo durante a vida e espero um dia nascer e, com a segurança do meu amigo em introdução de um texto, escrever “Eu nasci!”. Nem que seja antes da minha morte. Talvez assim tenha acesso à eternidade, não? Mas deixando-me de metafísicas, é claro, que vou acordando para a vida, num continuum, com acontecimentos que posso valorar como sendo bons ou, muito mais comummente, com aqueles que considero maus. No entanto, hoje não me sinto disposto a expor publicamente a intimidade. Deixem-me, antes, que conte um outro episódio, que deu a banda sonora à minha adolescência e que, de alguma forma, foi parte do gerúndio do meu nascimento enquanto jovem-a-ser. A minha irmã, aqui fica o agradecimento, ofereceu-me um CD de AC/DC – Dirty deeds done dirt cheap. Este, foi o primeiro CD que tive na vida ou, pelo menos, o primeiro que eu guardei e que ainda hoje tenho na minha coleção e, olhem, que não sou de coleções. Esse álbum, chegado às minhas mão na altura certa, num período muito conturbado da minha vida, pela perda do meu pai e por toda a revolta daí advinda, mostrou-me a importância da exposição da revolta. Descobri com essa banda de guitarras endiabradas e vozes esganiçadas de adultos cabeludos e desafiantes, que eu também tinha o direito a tudo isso. A mandar para o caralho o que me oprimia. É esse o poder do rock (passo o cliché).

Com AC/DC e todas as outras bandas que se seguiram, legitimou-se o descontentamento infantil, num adolescente farto dos colegas e da escola em si, instituição que não o ouvia, e só queria saber das suas notas. Portanto, mais que uma banda sonora, esse estilo musical foi também uma ferramenta para me desembaraçar do bullying que a certa altura sofri. Os gritos contra a opressão, de uma instituição conservadora, que era e continua a ser, a escola, foram denunciados, de resto, por uma imensidão de bandas de rock que vão desde os célebres Pink Floyd, aos Ramones, passando por Twisted Sister até Van Hallen. Escusado será dizer que, aos berros, nas colunas do meu leitor de CD, cumpriram umas das suas funções. Não querer viver, sem nascer. E aos berros, se tiver de ser. Afinal não há partos silenciosos.

Conquanto tenha a impressão que muita gente à minha volta nunca nasça e que poderá, eventualmente, passar pela vida sem abrir os olhos, não tenho como não deixar de sorrir, com a página do meu colega deste livrinho que abro, no qual está a criança que fui, também finalista do quarto ano de escolaridade.

Em jeito de síntese, porque assim são todas as redações, introdução-desenvolvimento-conclusão, deixo-vos o recado da tal sentença:
São várias as razões pelas quais alguém não nasce. Uns porque não lhes surge a oportunidade, outros, contudo, porque recusam o nascimento ou até duvidam se será bom nascer. Uma questão de cobardia. Mantêm-se na placenta, que é aquela zona onde a consciência de si enquanto humano, que é a premissa filosófica para a existência, não se desenvolve. O envolvimento numa rotina que não nos deixa nascer, o socialmente aceitável, um sistema conservador que valoriza o dinheiro pelo dinheiro, a lei dos mais fortes, a submissão dos mais fracos. Afinal, há sempre velhos do restelo, na praça da cidade, a apregoar o respeitinho-que-é-muito-bonito e a cingir a humanidade a nascimentos biológicos, afinal, o único que é natural. O outro, caro leitor, é uma ousadia que se não concretizaste enquanto pequeno, que algum dia se te lo exijas, por amor à vida que é tua e que merece nascer.

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