REGINA SARDOEIRA |
O que ainda falta ao mundo do homem é a elevação da beleza à condição de paradigma. Uma inconcebível atonia sobrevoa a fuligem cinzenta do universo em que nos movemos, os valores trazem, todos eles, a marca álgida do nosso próprio interior desencantado e vazio.
Impotentes para descobrirmos em nós a faísca e sermos a flecha capaz de derreter toda a escória e abalar todas as paredes, deixamo-nos estar, colados à ancestralidade, numa preguiça que nada justifica; e vamos passando, à frente dos nossos próprios olhos, a imagem cansada de um mundo, outrora fruído. Outrora, mas não por nós.
O rio, por exemplo, vem de longe, espelho de muitos sonhos, cenário de muito delírio: mas é uma imagem gasta que insistimos em erguer, à míngua de outros estímulos. E no entanto é dele que urge falar, do mistério meândrico das suas águas, do matiz verde-negro do seu ventre. Mas o rio é caminho e não paragem. Dir-se-ia que nos apegamos à margem numa violentação criminosa e a forçamos a ser o subterfúgio da nossa própria incapacidade de criar. O rio está ali, mas corre, alheio à moldura viva, ele próprio vivo e tenso numa emergência de conflito.Nós, porém, como que esquecemos já tudo. Um dia, retratamos o rio no poema ou na tela, damos-lhe aquela cor, aquele ritmo, que jamais ele possuiu no âmago e forçamo-nos a crer na omnipotência da nossa construção. Esquecemos a corrente, que não volta nunca atrás, e nós voltamos, queremos subi-lo, violentamo-nos e violentamos-lhe o jeito, numa estulta ânsia genésica. Acreditamos no fluxo, mas temos medo de partir à conquista do mar: o rio vai, mas nós ficamos, porque dele só amamos a margem, o peso telúrico que lhe define a corrente mas que não é ele.
E cremo-nos triunfantes. Achamos que fomos capazes de entender a misteriosa emanação líquida do fluxo e imaginamos uma viagem vazia ao rés da água. Mas não somos realmente nós que partimos. Mandamos, pela água abaixo, a diluição imprecisa de alguns sonhos esparsos que imediatamente a voragem traga numa fome panteísta. Quanto a nós, andamos por aí, desligados do solo, mas caminhando sobre os pés na mais louca das arrogâncias, embrenhados na volúpia do ar e do azul e cada vez mais pobres…porque o sonho partiu.
Ei-lo que se faz mar. Partícula encantada, perdeu já a humanidade, que tão mal se lhe quadrava, e aspira à gaivota, ao raio de sol, ao fermento cerúleo da brisa.Porém, o mar é ainda ocasião de desgraça: o destino dos sonhos oceânicos é esmagarem-se, perdidos, na farpa de um rochedo ou acabarem, putrefactos, no desperdício areento.
E assim , privados das condições anímicas que lhe devolveriam sentido, perdem-se os sonhos humanos e apenas fica o esboço evanescente do milagre.
Falta-nos o jeito que nos faria envolver o nosso mundo numa teia de mistério e desnudamo-nos pelas praças e avenidas, berrando a nossa fome, enrouquecidos e roxos de tanto pregar o que afinal não passa de silêncio.Achamos que é bom aquecermo-nos ao lume das ideias dos outros e fazemos com eles o pacto vergonhoso da nossa servidão.
O belo ausentou-se do mundo humano, não pontifica, é a excepção grandiosa, emergente do atoleiro e logo adulterada pelo visco ululante da mediocridade. Estes lampejos são, contudo, condição suficiente para que ressurja o desejo da adesão: mas não convém acalentar ilusões antecipadas. A vida é fluxo e refluxo: no gume da maré esplende o brilho solar e abrem-se as auroras. Quando o rasto oceânico se retira, o que fica são os escolhos perdidos de um sonho e as feridas abertas de uma pungência indolor.
Perdedor de sonhos, o homem pendura-se, estéril, nos farrapos grisalhos do seu próprio universo arrancado à omnipotência do Olimpo e compraz-se na contemplação de simulacros. Ele próprio, simulacro de si, passeia-se, flutuante,apenas ao crepúsculo, e revê-se na água túrgida de qualquer ribeira, feita oceano e vastidão. Falta-lhe a tenacidade encantada do sonho, o vigor inebriante e a audácia que o levariam, de chofre, mais para além.
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