ARTUR COIMBRA |
1. Comemoram-se hoje, 5 de Outubro, os 107 anos sobre a revolta da Rotunda, em Lisboa, quando o comissário naval Machado dos Santos, num gigantesco acto de heroísmo, assumiu com outros camaradas de trincheira o anseio de um Portugal redimido, renovado, vivificado por um novo paradigma. A monarquia estava podre e foi escassa a resistência dos realistas, apenas corporizada por Paiva Couceiro, o último Quixote a defender a bandeira azul e branca.
A República foi proclamada ao fim da manhã de 5 de Outubro da varanda da Câmara Municipal de Lisboa, por Eusébio Leão e José Relvas, membros do Partido Republicano Português, e a Machado dos Santos, mortos, por assassínio e suicídio, respectivamente, os líderes da conspiração republicana, Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, coube a tarefa patriótica de cumprir a esperança de um novo Portugal.
Como em outras situações aconteceu, a revolução republicana devorou também este herói, que ainda defenderia a República, em Monsanto, em 1919, contra as investidas monárquicas, mas acabaria assassinado na famigerada e trágica Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921, vítima das forças revolucionárias que alimentou durante mais de uma década.
2. A República implantou-se em torno de ideias contrapostas à monarquia vigente desde a instituição da nacionalidade, fazendo prevalecer as da democracia e da soberania popular. Ao contrário da monarquia baseada na hereditariedade do rei e na soberania validada pela origem divina do poder, a República estriba o seu sistema nos princípios electivos, e com a autoridade a emanar directamente do povo, através dos sufrágios eleitorais realizados periodicamente. Por isso é que os políticos têm a obrigação de se assumirem “acima de qualquer suspeita”, o que, desafortunadamente, quase todos os dias é infringido. A política só é uma actividade nobre se tiver como referência absoluta a ética e a lisura dos procedimentos, que inviabilizam qualquer deriva autoritária ou corrupta.
A República acaba também por reforçar alguns direitos humanos fundamentais, como os da liberdade, ao transformar os velhos súbditos em cidadãos, ou da igualdade que, ao negar os privilégios derivados do nascimento, confere aos cidadãos em geral a possibilidade de ascenderem a qualquer magistratura, o direito a eleger os seus representantes nas instituições democráticas (das juntas de freguesia à chefia do Estado) e a serem eleitos, dentro dos requisitos estabelecidos para cada acto eleitoral.
Além da consagração insofismável da soberania popular e da cidadania individual e colectiva, a República canonizou um outro princípio, que tanta polémica gerou, neste último século: o da separação da Igreja do Estado. Ao contrário do regime anterior, em que a Igreja dominava a monarquia e no qual o catolicismo era assumido como a religião oficial do Estado, na República o princípio dominante é o da separação clara das esferas politica e religiosa. É o triunfo do laicismo, no sentido em que nem a Igreja manda no Estado, nem o Estado manda na Igreja. Há respeito mútuo, mas não subserviência de qualquer das partes, muito menos promiscuidade. E isso é que é saudável!
Não deixa de ser paradoxal, contudo, que, apesar de extremamente agredido e vilipendiado ao longo do Estado Novo, o sistema de governo republicano nunca seria alterado, sequer por Oliveira Salazar, basicamente concordante com os seus princípios fundamentais, apesar de se ter como um “monárquico de coração”.
Hoje, mais de um século passado sobre a proclamação da República, há valores republicanos que se mantêm e reforçam. Por exemplo, o fortalecimento do municipalismo, que foi uma das mais sonhadas utopias saídas do 5 de Outubro. O Portugal dos nossos dias é uma “construção” dos municípios, em áreas fundamentais, desde as infra-estruturas básicas à cultura, da educação ao desporto e ao social.
Outro exemplo é o reforço da participação cívica e política dos cidadãos e, em especial, a emancipação da mulher e a consolidação dos seus direitos (no trabalho, na esfera privada, no domínio público). E também a igualdade de oportunidades entre os sexos e no âmbito social, bem como o sentido do progresso e da evolução, aos diferentes níveis.
Igualmente o é a aposta decidida na Educação, como pressuposto para o desenvolvimento económico e para a libertação social. Lembremos que a I República instituiu a instrução obrigatória de 4 anos (que, depois, regrediu para 3 anos, no consulado salazarista, para quem bastava ensinar as crianças a “saber ler, escrever e contar”…) e hoje se investe politicamente na elevação das qualificações dos portugueses. Embora em anos recentes a aposta tenha sido mais decidida e determinada.
Princípios republicanos são também o apego ao sistema democrático, o triunfo da cidadania e do civismo, as atitudes de rigor, lisura, integridade e verticalidade nas relações humanas, o respeito pelos direitos sociais e políticos dos portugueses, a tolerância como sistema de vida, enfim, o combate à corrupção, à fraude e a todos os atropelos à dignidade da “coisa pública”.
Por tudo isto, nos parece que os valores republicanos continuam perfeitamente actuais, um século volvido sobre a sua validação, nos seus pressupostos, nos seus desígnios, na sua prática inovadora.
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