segunda-feira, 23 de outubro de 2017

ESTÓRIAS DO CACHEU

JOANA BENZINHO
Em 2015, quando calcorreávamos a Guiné Bissau com vista à edição do Guia Turístico “À Descoberta da Guiné-Bissau” fomos repetir a viagem de barco pelo Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu, no norte do país. Este Parque concentra a maior mancha de tarrafes (mangais) da África Ocidental no estuário do rio Cacheu que se multiplica em vários braços de rio e cria uma paisagem única tendo obtido o estatuto de Sitio Ramsar, 2015 - Zona húmida de importância mundial. Aqui podemos encontrar hipopótamos, macacos verdes, gazelas, golfinhos, jiboias, crocodilos, flamingos assim como dezenas de outras aves migratórias que escolhem este local para invernar na África Ocidental e muitas espécies de peixe como a corvina, a raia, o bagre, a bicuda e o muito apreciado camarão.

A viagem teve um início acidentado, estando quase a não se concretizar por ter avariado uma peça no barco que teve que ser substituída por uma outra vinda do Senegal, e acabámos por adiar o passeio 48h. No dia marcado, saímos bem cedo de Bissau e pelas 9 horas lá estávamos nós no porto de Cacheu como combinado. Embarcar foi uma aventura. A maré baixa deixou o pontão uns largos metros acima do barco, com uma escada ferrugenta e pouco convidativa a levar-nos até umas águas agitadas e um casco que ora se chegava ora se afastava da escadaria. Vertigens postas de lado, máquinas fotográficas e passageiros a salvo, lá partimos à aventura.

A paisagem é verdadeiramente de cortar a respiração. De um verde luxuriante, com palmares a perder de vista de uma lado e do outro e os tarrafes com os seus troncos esguios enraizados na terra e a bailar ao sabor das águas. Num dos braços de rio, uma rede de pesca enrolou-se no nosso motor e ali ficámos atolados com o marinheiro e o ajudante a tentar resolver o problema. Os pescadores causadores do percalço e que praticavam pesca ilegal, ainda tentaram passar despercebidos mas perante a evidência, acabaram por vir em nosso auxílio e tudo se resolveu.

Quando retomámos a marcha, o capitão relatou-nos a tragédia que recentemente se tinha abatido naquela região, mais precisamente em São Domingos. Uma piroga com três mulheres tinha-se feito ao rio, para mais um dia de pesca artesanal, quando um grande crocodilo cheio de ostras no casco, se fez à piroga e de lá arrancou uma das mulheres que imediatamente submergiu nas escuras águas do Cacheu, levada na boca do crocodilo. Foi um ataque perpetrado de uma forma nunca antes vista por ali, as sobreviventes afirmavam que o crocodilo se tinha empoleirado na piroga para puxar a mulher. Falava-se que pouco tempo antes, também um homem tinha ficado em uma mão, quando andava pela margem do rio, levada por um crocodilo com as mesmas características, velho e cheio de ostras e lapas no dorso. E foi assim que aflorou o íntimo animista destas gentes e se viveram tempos conturbados na zona de São Domingos e deste Parque de Cacheu. Mulheres e homens deixaram de ir ao rio pescar, temerosos de um novo ataque. Na povoação, acreditava-se em feitiçaria que se abatera sobre aquela jovem mulher. Faziam-se oferendas aos Irãs e o povo reunia-se para interpretar os sinais vindos do além para poder encontrar um culpado, transformado em crocodilo para ceifar aquela vida. Este culpado seria determinado em função da interpretação de resultados pedidos às árvores, aos Irãs (Deuses), às entranhas de uma galinha ou através de um outro método similar e infalível (!), segundo as suas crenças.

Dizia-me o marinheiro que por aquela altura ainda não havia resultados, mas enquanto não fosse encontrado o culpado - que muito provavelmente acabaria linchado - ou o crocodilo morto, ninguém voltava à pesca nem a usar o rio.

Um grupo de militares tinha partido em busca do crocodilo pelos braços de rio e tinham-no avistado mas, quando iam disparar, deram-se com a arma encravada, deixando-o escapar.

Foi neste contexto que chegámos a São Domingos e desembarcámos entre lodo até aos joelhos e eu, naturalmente aterrorizada e alerta em busca do terrível crocodilo. As pirogas lá estavam todas em terra e não se via sequer os habituais miúdos a brincar junto do pontão semidestruído onde se pode apreciar um magnífico pôr-do-sol. O “desgosto” era patente nos habitantes, estava ainda tudo muito fresco nas memórias da população.

O nosso passeio, apesar de ter proporcionado belíssimas fotos e deixar bonitas paisagens marcadas na memória, levou-nos de volta a Cacheu com o amargo de boca desta tragédia que poderia, em potência, anunciar uma nova fatalidade caso fosse determinado pelos Irãs um culpado pela atitude do crocodilo.

Já na Europa e com o Guia no prelo recebemos a notícia de que o crocodilo tinha sido capturado por populares e encontrava-se exposto, pendurado numa árvore, para gáudio de todos. Era ele. Seria já um velho crocodilo a contar pelo tamanho e pela quantidade de conchas sedimentadas no seu dorso. Felizmente, e apesar dos esforços, não foi determinado nenhum culpado para além do réptil e não houve assim mais vidas a lamentar.

Uns meses depois voltei ao “local do crime” e tive a satisfação de ver novamente as pirogas na sua lufa-lufa diária em busca de peixe e de sustento para os magros orçamentos familiares daquela gente, e as crianças a brincar junto do rio. A vida voltou à normalidade no Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu.

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