segunda-feira, 18 de julho de 2016

TÓPICAS DO TEMPO, por Isabel Rosete e IR [1]

ISABEL ROSETE
Cogitar, estar, vaguear… ou, simplesmente, vacilar entre o amargo de boca do fel e o doce do mel, são estádios existenciais de todos os seres humanos imersos num Passado que sempre os corrói, em pesadelo, ou saúda, em dignidade e júbilo, na sua indigência ou na sua nobreza.

Ah, a Saudade que nos move é imensa no seu intenso saudosismo do Passado que, também, é Presente e, sobretudo, Futuro! Ah, as lembranças que foram do que já era – e ficam, e perduram –, e não foram do que ainda não-é! Quiçá «o que foi não é nada, e lembrar é não ver»[2], ou ver em reflexos baços, distorcidos, dispersos, num espelho partido sem moldura, com algumas sombras.

Almas em silêncio. Corpos exaustos. Bocas caladas. Ouvidos moucos e olhos vendados pelo suor daquela transpiração que secou no mármore de outrora – neste agora menos alvo, manchado e gasto – reclamam pelo suspiro eterno do Tempo que se consome e se avizinha, quase sempre desesperado. Um desespero que não é o do Tempo, mas o nosso, o do nosso tempo próprio. Ai de nós, criaturas temporais sem tempo de espera, com o tempo marcado pelo relógio a esgotar-se por entre as nossas mãos e os nossos pensamentos, que não mais o abarcam no seu todo!

Somos, eternamente, seres do Passado e do Presente. Meros pedaços longos e meros instantes. Momentos de cólera, de paixão e de com-paixão, de agonia, de caridade ou de caridadezinha; somos, eternamente, seres mundanos e intra-mundanos, que se excedem nos limites indeterminados do Universo, jamais alcançados. Nele nos movemos comofrágeis vimes, na possibilidade iminente de nos quebrarmos no enlace do mais ténue sopro do vento, como pequenos pontos repletos de grandes desejos, de intensas ambições megalómanas, naturalmente megalómanas, face à nossa condição de efemeridade de seres-de-passagem no mesmo ou em múltiplos lugares, em topos que são e não são os nossos, esses de marés imensas de ilusão, de utopias em que cremos, como se de realidades autênticas se tratassem.

Mas, afinal, o que é o Presente neste caminho de curvas da Vida e da Memória, com algumas linhas rectas, determinado pelo Decreto do Tempo? Pergunta IR ao narrador, ao mesmo tempo que responde (sem esperar pela resposta dele), acompanhada pelo seu Mestre Caeiro:


O Presente «é uma cousa relativa ao passado e ao futuro.

É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.

(Mas) eu quero só a realidade, as cousas sem presente.»[3]



Quero as cousas sem o Tempo e sem tempo; quero vigorar na eternidade de uma Memória infinita, sem a trindade cronológica; quero as cousas nas horas redondas, num ciclo onde nada se repita, nem se consuma, nem se corrompa... que só se vivifica antes e para além das franjas da Morte, conclui IR.

Somos ansiedade abismada; somos adrenalina pura; somos o vulcão e a sua lava, cadente ou já fria, sempre prontos a explodir em qualquer ocasião, a derramarmo-nos pelos nossos corpos, pelos corpos de muitos outros, exaustos pelo simples cansaço de Existir no cansaço do Tempo, que jamais dominamos, afirma o narrador, expressando-se, agora, em verso, citando-se:


«Definitivamente, somos viandantes,

Passageiros de múltiplas paragens

Sem lugar certo ou determinado.


Vagueamos sem Pátria,

Sem Destino, rumo a um qualquer lugar.


Erramos pelas franjas do Tempo

E do Espaço sem habitação,

Sem morada.



Somos metamorfoses ambulantes

De buracos de inflamação,

Pedaços de um Tempo finitamente infinito,

Redondo, mas em des-comunhão.»


E, além disso, como se não bastasse...


«Vivemos a vã aspiração

De controlar esse naco de nós

Pela minuciosa máquina do Tempo

Que o nosso pulso suporta.


O relógio está aí voltado,

Sempre voltado para os nossos olhos,

Para os olhos de todos os outros

Expectantes, ávidos, desejantes

De um tempo vindouro

Onde qualquer ideal

Possa ser consumado Ad Eternum.


Que ilusão somos nós, Homens,

Criaturas temporais de rosto (nem sempre) encoberto!


Que ilusão somos nós, Homens,

Entes de palpites inconstantes,

Conscientes e inconscientes,

No pulsar de um Mundo que nunca adormece!


Buliçoso e turbulento,

O Tempo gira sobre nós próprios

Em raios de luz e de escuridão.

Move-nos dentro e fora das nossas órbitas,

Nem sempre concêntricas;

Conduz-nos para o topos debilitado

Da nossa condição de estritos seres

De passagem, em digressão

No subterfúgio incógnito da nossa con-fusão.»


Passeamos calmante – sempre que a serenidade nos habita a alma – pelos jardins das nossas cidades, esses jardins de pedra de gentes anónimas e de logradouros por onde vagueia o nosso imaginário, algures perdido, algures encontrado. Mesmo transbordando de originalidade, somos tão comuns, tão mesquinhos, como todos essoutros que se nos apresentam como inferiores e, até mesmo, indignos das nossas palavras, dos nossos gestos, por mais insignificantes que sejam.

Aí estamos nós, Homens e Mulheres, no gigantesco Teatro do Mundo – em espelhos e reflexos, em sombras, em cópias ou originais, em molduras quebradas ou hirtas – cujo cenário central é a Vida, a nossa vida, marcada por uma azáfama constante, não se sabendo bem em nome de quê, nem para quê! Habituámo-nos a viver em multidão, na nossa grandesolidão-interior. Perdemos a Individualidade, a Identidade, nos trilhos da globalização planetária. Sabemos que já não vale a pena Ser-Narciso. E Eco? Ah, Eco! Eco morreu longe! A sua voz não paira mais em derredor dos nossos ouvidos de escutas passivas e varridas, tão distraídos nas memórias que, ora bloqueiam, ora movem, para trás e para à frente, as nossas vísceras neuronais. Somos todos os outros, menos nós próprios! Fixamos o Infinito. Perdemo-nos dos outros e de nós, esparsos nacomediógrafa tragédia da Vida.

Balbuciamos algumas palavras que, apenas, a nós nos dizem respeito. Somos eternos monólogos, quais conchas de ostras sem possibilidade de abertura. O tempo do diálogo superou-se e superou-nos. Mas, por vezes, em momentos de coragem assertiva, também gritamos, bem alto, para que o Mundo nos ouça em qualquer das suas metástases.Necessitamos, amiúde, de extrapolar o sofrimento e a alegria vividas outrora. Somos o Passado! Sim, somos Passado! Porque vos espantais? Afirma e pergunta convictamente – agora de um modo ainda mais personalizado – o narrador desta estória[4]original de Fluxos da Memória, anunciando as considerações que se seguem. IR permanece em silêncio, meditante. Nada mais tem para acrescentar, pois subscreve esta tese. Mostra-o através de um acenar da cabeça, indicando o seu «Sim» peremptório.

Somos o Passado, mas lançados num Futuro (quase) por nós pré-determinado em sonho, alucinados, inquietos... como se tivéssemos a obrigação de controlar o Tudo e de não sermos supostamente insensatos, irracionais ou debilmente emocionais, como se o Tudo fosse ainda pouco, como se declarássemos a morte ao Acaso, ao Fado, ao Destino, explica o narrador com a mesma firmeza, e continua, sem pausa: Somos tão estranhos e tão complexos que mergulhamos, sempre atónitos, no drama, a cada passo criado, como traço central da nossa própria Ex-istência simples de complexos físico-químicos, cheios de átomos e de moléculas, de células, de veias, de poros… com Alma, com Corpo, com Razão, com Sentir... Marcamos o passo e o compasso deste nosso peregrinar, tanto interior como exterior (em simultâneo ou não), mas a um ritmo tão irregular, que nos perdemos no contra-tempo, nas pausas e nos silêncios de seres-de-linguagens, de seres de sinais, visíveis e invisíveis, de mentes em espantos e espasmos circulares.

Somos o tabuleiro do Jogo. Também o Jogo, em alguns casos. Em outros, apenas meras peças deslocadas sobre o tabuleiro – para cá e para lá, para a frente e para trás – segundo a vontade dos jogadores, nós e os outros de nós mesmos, em frente e verso. Escravos de tudo isto, quando nos libertamos do jogo, nem que seja por escassos momentos, pegamos no bloco de notas, ali tão sossegado na secretária (des)arrumada, como se o papel em branco, na sua virgindade, e a caneta, que nunca escreveu antes (ou que está quase gasta de tanto escrever em outros papeis), tivessem a estrita e impreterível obrigação de serem os nossos fiéis confessores de tantos jogos de perdas ou de ganhos, de jogadores e de joguetes daquelas paixões arrebatadoras, das quais só ficou o corpo lânguido, ou a alma embriagada, ou a fortuna ganha naquele instante, ou seja lá o que for!

Somos tão estúpidos, tão bestiais… em tantas outras vezes, que fingimos não ver o que realmente vemos. Esse célebre pleonasmo camoniano, o do visto, claramente visto, já não faz parte dos tramites da nossa consciência de “animais racionais” com cio – vejam lá o (aparente) paradoxo!, comenta IR, que tanto escreve sobre o impulso da sua emotiva racionalidade instintiva, durante uma pequena pausa respiratória do narrador – de tarântulas voadoras, ou de qualquer outra espécie de aberração que deixámos como suposta obra de arte, ainda informe, feita pelas nossas próprias mãos de artesãos ou de arquitectos, para que a Natureza, um dia, a acabasse na sua per-feição. Iludimo-nos e pensamos – como Grande(s) Senhor(es) iluminados!, acrescenta IR, quase em sobreposição com o narrador – que somos donos de tudo, quando, enfim... nem sobre nós mesmos temos algum controlo merecedor de consideração essencial. Somos incapazes de perceber o estado desta nossa (própria) Humanidade, se é que este vocábulo – tantas vezes reiterado em nome de tanta coisa em vão, nota IR, nessa mesma quase sobreposição de falas – ainda tem algum sentido, algum conteúdo, explícito ou implícito, que nos possa falar de dentro de si mesmo sobre o quem somos como Humanidade.

No entanto, continuamos e somos Da-sein – literalmente, ser-aí, e este aí é o Mundo, o nosso Mundo, onde residimos ou habitamos, onde, quiçá, fomos lançados, um dia, sem intimarem as nossas vontades (o narrador, heideggeriano tal como IR, não podia deixar de parafrasear Martin Heidegger) – mesmo que nos vejamos despidos de tudo, des-nudos dos traços cruciais dessa tal Humanidade, na sua nobreza Ética, há muito afastada da nossa vista, que a nossa vista já não alcança por miopia, por cataratas, por glaucomas, por essa cegueira mental intensa e imensa (como tens razão, Saramago, nesse teuEnsaio Sobre a Cegueira, a tua obra-prima, pensa IR!). Meu Deus! Como a nossa vista-curta cresceu nestas últimas décadas, se é que não existiu sempre em todos os momentos da nossa História de homens-animais castradores. O Homo Sapiens-Sapiens – assim nos rotulam – é, nos tempos modernos, o Homo Miupus, aquele que não é capaz de ver para além do que a sua vista torna visível na proximidade mais próxima dos objectos.

Somos, maioritariamente, puros espectadores passivos, entes sem convicção de Identidade própria e determinada, pares ou ímpares rebocados pelas modas dos outros, porventura, igualmente, sem essa convicção identitária. Há uma espécie de ciclo de atitudes pré-determinadas – tendentes para a conformidade do Diferente –, de comportamentos em cadeia uniformemente pautados pelos mesmos moldes de pensamentos estereotipados, alinhados por uma certa bitola inflexível. Que coisa mais terrível e abominável! Mas, somos o que somos! Mas, não sabemos, todavia, o que realmente somos! IR, tão atenta e reflexiva quanto explosivamente crítica, interrompe o narrador, porque é imperativo fazer o seguinte reparo: Tal como eu, penso que ninguém tem um espelho-interior ao lado do seu espelho-exterior, este onde me olho em maquiagens várias na minha mesmidade! As maquiagens são, sempre, várias e, tão-só, se conjugam com o tom das roupa que visto! Será que a alma tem cor? Será que a alma se veste com as mesmas cores do corpo, as dessas vestes que o encobrem ou salientam? Cores-símbolos, cores-sinais... quando escolhidas, propositadamente, a partir dos seus estádios (supostamente) não-visíveis? IR sempre interroga sem, no entanto, deixar as interrogações em suspenso. Interroga afirmativamente, porque já sabe as repostas, as suas e as do narrador, que continua: Chegámos, até, ao mesmo modo de ser-objecto, entre os outros objectos, indistintamente. Nada mais! Passamos por elementos de cálculo, de factura, de recibo, tão descartáveis como quaisquer outras coisas do género; passamos por peças do uso quotidiano, completamente rotineiras que, marginalmente ou não, vão sendo e deixando de ser quase no mesmo instante. Somos estádios ambulantes, pequenos detritos do lixo cósmico, pedaços de meteoritos estilhaçados vagueantes pelo Cosmos, desaparecendo, fragmentariamente, na sua imensidão. Já não seriamos capazes de nos tornarmos Zaratustra, como Nietzsche! (Acrescenta IR, sem que o narrador replique).

Somos folhas de árvores. Umas vezes persistentes – quando a nossa Identidade impera e se impõe, apesar de todos os obstáculos; quando os nossos ideais, princípios condutores, são assumidos de rosto aberto, assim se fixam e mostram.Outras vezes, caducas – quando, a todo o momento, porque perdemos essa Identidade ou a ocultámos, somos espezinhados nas ruas, nas praças, nas calçadas pelos passos pesados das gentes indigentes (tal como eu, IR defende a teoria que poderíamos designar por “Identitária”, aquela que estabelece o primado da Identidade como categoria existencial-vivencial suprema).

Mas... que tédio! Mas... que cansaço! Mas... que aborrecimento esta coisa de ser humano entre os milhões de ditos e re-ditos seres humanos, que nem sempre humanos são! Interrompendo o narrador, embora mantendo a mesma linha reflexiva, afirma e prossegue IR, preservando esse seu carisma crítico habitual, sem eufemismos, falando em voz bem alta, como se estivesse perante a plateia dos seus leitores. A sua alma quase que grita, mas sem histerismo, no vigor da necessidade determinante deste dito, para que ninguém deixe de a ouvir, permitindo ao narrador continuar com o seu raciocínio (por ela subscrito), nesta sua intervenção, de igual modo em voz alta, em três pontos exposta, sobre a Humanidade na sua urgência de mudança evidente:

– Homem: transcende-te, de uma vez por todas. Passa ao outro de ti mesmo, esse que usa o teu verdadeiro rosto, escondido por detrás do opaco véu do teu inútil viso. Ou, então, «se te queres matar, porque não te queres matar?» – como diria o meu Mestre Álvaro de Campos. Mata-te, Homem sem hesitações ou dissimulações. Mas, só depois de te lembrares que és um existente envolto e impregnado em dilemas múltiplos, talvez intermináveis, que te fazem rodopiar como um pião que perdeu o fio!

– Homem: pára, escuta e cresce. Ouve os apelos do Mundo e da Terra que, apesar de martirizados por ti próprio, ainda lançam o seu bramido de alerta, como o mar revoltoso, na esperança de um advindo acolhimento, algures possível num tempo que os acoberte!

– Homem: parte e rasga todos os horizontes reais e possíveis. Só assim suspenderás esse teu Passado penoso; só assim erguerás aquele que foi/é glorioso, e encontrarás as réstias de um dia radioso, até mesmo nos mais altos cumes das florestas densas e agrestes; só assim elevarás os traços de um tempo outro, onde a Saudade se torna Felicidade serena; só assim alcançarás as linhas de uma nova idade, de um novo-começo, de um outro re-nascer, onde as lembranças se libertarão de todas as mágoas (o narrador termina, deste modo, o seu discurso com estas suas máximas imperativas de Esperança necessária).
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[1] O meu semi-heterónimo

[2] Alberto Caeiro, in A poesia de Alberto Caeiro, apresentação crítica, selecção e linhas de leitura de Manuel Gusmão, Editorial Comunicação, Lisboa, 1986, p. 57. (Edição patrocinada pelo Instituto Português do Livro).

[3] Idem, p. 58.

[4] Entenda-se o termo «estória» como sinónimo de «narrativa criada», ao contrário de «história», «narrativa que faz parte dos factos ocorridos na vida dos povos» (Nota do narrador).

2 comentários:

  1. Muito bom! Não é todos os dias que se lê textos assim tão bem enraizados em bons poetas e filósofos, tão bem enraizados de inteligência e de experiência pessoal, filosófica, universal.Espero organizar-me para ter tempo de ler um pouco mais os seus escritos.Fica-me a ideia síntese de que todos, cada um segundo com as suas ferramentas naturais e intelectuais, deseja o cumprimento dos seus desejos. Deseja sempre o melhor que já sentiu, deseja sempre o prazer presente. Mas é o céu ausente, se ausentando sempre que proclama em todos os credos e filosofias, em todos os gestos e artes, em todas as procissões dos nossos atos, esse céu, esse Deus, esse super homem, essa qualquer ilusão da nossa paixão. Concordo com a sua visão. É o desespero que nos move. Para nos mover para a vida e não para a morte, veste-se de ilusão, de crença, de paixão. Obrigado. Haverei de ler mais e com mais cuidado os seus escritos. Manuel Coelho

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    1. Grata pelo seu comentário, igualmente bem fundamento.
      Até sempre!
      Bjs,
      Isabel Rosete e IR

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