segunda-feira, 10 de julho de 2017

TRIBUTO AOS LAVADORES DE CARROS DE BISSAU

JOANA BENZINHO
Em Bissau dificilmente não nos cruzamos com eles. Invariavelmente com um balde de água e um pano, encostados a um muro à espera da sua sorte. São os lavadores de carros. Jovens na sua maioria que se dedicam a esta profissão de rua por falta de alternativas. Muitos para pagar os estudos ou para levar comer para casa, onde muitas vezes há vários irmãos mais novos e pouco ou nada para comer. Alguns não contarão ainda dezoito anos mas, ao final do dia, na contagem dos tostões do magro orçamento familiar , os seus braços contam tanto ou mais que os de um adulto.

Estes jovens lavadores de carro começam bem cedo junto da catedral e do mercado municipal a lavar os carros que ali lhes entregam. Carros privados e muitos táxis, os carros mais vistos nesta capital guineense. Espalham-se também pelas zonas das pastelarias e restaurantes da cidade, onde os expatriados e os mais abonados vão com frequência e lhes pagam na certa o trabalho que estes fazem espontaneamente.

Tão espontaneamente que com graça conheço um ou outro carro que deixa um cartão no tablier, com letras bem gordas a dizer qualquer coisa do género “este carro não quer ser lavado”. Na certa, corre-se o risco de ter o carro lavado várias vezes ao dia, nas diferentes artérias da cidade, pois pó é coisa que não falta em tempo seco, e lama para o salpicar no tempo das chuvas. Um ou outro lavador mais atrevido, até pede dinheiro por conta de lavagens futuras para poder comer uma sandes ou beber uma cerveja fresquinha quando o calor aperta.

Não têm vida fácil. Vivi uns meses em Bissau e conheci de perto os lavadores da minha rua. Jovens cujos sonhos se confinam ao balde de água que diariamente vão encher na mangueira do quintal da casa onde vivi no Hotel Coimbra, com a conivência dos donos e inquilinos que fazem vistas grossas a esta apropriação de água alheia. Dois deles vivem num carro abandonado, estacionado do outro lado da rua e já com ervas a crescer nas rodas o que lhe dá um estranho ar de casa com jardim. Começam cedo, bem cedo, mal surgem os primeiros raios de luz e o calor naturalmente aperta dentro do carro. Para os tempos de pausa, duas cadeiras já incompletas e uns cartões debaixo da árvore servem para passarem o dia, entre períodos de sesta na hora de maior calor e de leituras de uns livros já gastos que os ajudam a passar o tempo. Comem mesmo ali, uma refeição comunitária de arroz com um gostinho (um cubo Maggi a dar sabor ao arroz branco), ou com um pouco de peixe em dia de fartura. Cumprimentavam todos os dias, primeiro tratando-me por senhora e depois pelo o nome quando alguém lhes disse como me chamava. Com uma educação irrepreensível e um sorriso desarmante, insistiam em ajudar a carregar alguns sacos para casa se me viam muito carregada. Um dia um deles ousou bater na porta de casa para perguntar se a minha filhota estava bem pois ainda não a tinha visto a brincar na rua nesse dia e estava genuinamente preocupado. Porque ali nasceu uma cumplicidade improvável entre uma bebé de 12 meses e o rapaz que ia buscar água a nossa casa e aproveitava para a levar à rua para ver as pessoas passar e as folhas das árvores a abanar. Os dois de mão dada, ela fascinada com a figura alta e sorridente e ele enternecido com a curiosidade dela.

Nunca me lavaram o meu carro, pois tinha já quem o fizesse e eles sabiam-no. Há entre eles uma espécie de código de conduta que os impede de lavar os carros “dos outros” e, quando quebrado, dá lugar a grande algazarra na rua. Mas vi algumas vezes, por entre a sebe do jardim, o cuidado com que mo limpavam disfarçadamente se o viam mais sujo pela manhã.

Deixei Bissau em Março e regressei por uns dias em Maio. Passei pelos lavadores da minha antiga rua, num desvio intencional para os poder cumprimentar. Quando me viram, correram para o carro para me cumprimentar e apertar a mão com uma alegria desarmante. O Papis, o amigo da bebé, estava a lavar um carro ao cimo da rua e ao ver-me, deixou pano e balde e veio em passo acelerado dar um olá de sorriso rasgado e perguntar pela sua pequena amiga.

Comovi-me. Naquele momento percebi que aqueles rapazes ficaram a fazer parte da nossa história em Bissau. E nós da deles. Apesar de termos apenas partilhado a sombra de uma árvore que servia de serventia à minha porta de casa, ao carro onde pernoitavam e à sua cozinha/sala/cama.



Recentemente preocupou-me uma noticia que dava conta da ilegalização da lavagem de carros nas ruas de Bissau. Por saber que tantos jovens que sobrevivem com o pouco dinheiro que ganham neste trabalho digno, deixarão de ter com que comprar o arroz diário. E sobretudo por eles. Por esta vizinhança que enriqueceu os meus meses passados naquela bonita cidade da Guiné-Bissau. Espero que não tenha passado de uma simples intenção, sem concretização, por parte das autoridades. Porque os lavadores de carros são já parte do imaginário da cidade de Bissau.

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