sexta-feira, 7 de julho de 2017

MANUEL, O VIAJANTE

HÉLDER BARROS
O Manuel “Viajante” era um homem que, na sua profissão, corria grande parte do norte e centro do país, a representar comercialmente produtos de uma grande empresa de produtos alimentares, o que lhe deu, muito mundo. Conferiu-lhe uma mundovisão que, para a aldeia em que vivia em meados dos anos oitenta, lhe permitia ter uma visão das coisas muito mais alargada. Em suma, horizontes mais abertos. Naquele tempo, ao que me recordo, só os «retornados» portugueses, recém-chegados das ex-colónias portuguesas, tinham uma perspetiva das coisas mais avançada, para um país que, mormente no seu interior, estava ainda muito fechado na concha que o Estado Novo criou nas pessoas, nos lugares, nas mentalidades, ainda muito herméticas, cinzentas e anquilosadas.

A nossa nação tem bem vincada na sua história, uma tradição de explorar mares, ilhas, continentes, de busca permanente de novos horizontes. Afinal, fomos sempre um pequeno retângulo que funcionou como base de partida de marinheiros, que sequiosos de infinito, se lançaram em pequenos e frágeis barcos, explorando todo um Mundo, ainda desconhecido para todos, mas vasto de oportunidades de expansão da sociedade que então representávamos, com os nossos ideais sociopolíticos e valores fundamentais.

Igualmente, no auge do apertilho de desesperança da ditadura que nos cerceou o desenvolvimento, para que naturalmente a brava nação lusitana está destinada, afinal, sempre demos novos mundos ao mundo; espalhamo-nos por essa Europa fora e fomos, mais uma vez, decisivos na reconstrução de um velho continente esfrangalhado por duas grandes guerras e refém do medo que se impôs no decorrer da denominada «Guerra-fria». As vastas comunidades de portugueses espalhadas pelos continentes europeu e americano, são reconhecidas de forma abrangente como molas dinamizadoras da economia e socialização “positiva”, bem ao invés do que se passa com imigração originária de outras latitudes, mais “explosivas”.

Neste contexto, numa aldeia do interior de Portugal, poucas pessoas tinham essa dimensão expansionista, ao nível das mentalidades, como o Manuel. Assim, tratava-se de uma pessoa muito ouvida e respeitada pelos locais. Destacava-se pela capacidade de comunicar, pela forma cuidada como se vestia, num meio eminentemente rural, em que essa forma de ser e de estar, eram a exceção, muito longe de ser a regra. Casado com Flora, uma moça oriunda de uma família humilde, mas uma excelente rapariga em termos humanos, tiveram três filhos: João, Florbela e Ana, por esta ordem cronológica. E viviam felizes, no seu pacato lar, mas Manuel passava praticamente toda a semana fora de casa, devido à grande extensão territorial que tinha que cobrir na sua atividade comercial, numa época em que ainda não tínhamos autoestradas.

Claro está que Flora desconfiava, afinal eram muitas as noites a cismar na sua vida. Às vezes apetecia-lhe ligar para o Manuel, sentia falta de ouvir a sua voz, um homem que falava de tudo com muita facilidade, com uma fluência de discurso admirável. Ainda não havia telemóveis e o telefone era um luxo que, eles tinham em casa, mas que só se usava em último caso; ouvia-se o seu toque quase sempre quando havia uma fatalidade: uma tia que morreu, um acidente de um familiar e por aí fora. Quando Manuel planeava as suas saídas, usava o aparelho para contatar os seus clientes comerciais, por isso, para ele, o telefone ultrapassasse em muito o uso doméstico, raro naquela altura, até porque era um bem caro. No meio disto tudo, Flora começava a desconfiar do regresso cada vez mais tardio de Manuel que, a partir de certa altura se começou a restringir aos Domingos. Manuel justificava-se com o facto de estar a conquistar clientela cada vez mais a sul e que tinha que aproveitar a maré de crescimento da sua carteira de clientes. Certo é que nada faltava em casa, cada vez havia mais dinheiro; mas, para Flora, faltava cada vez mais o Manuel… 

Entretanto, os piores receios de Flora confirmaram-se. No seu mister e de uma maneira geral, Manuel era um sedutor, a sua profissão passava por essa capacidade de atrair pessoas para os seus interesses, tratava-se de um daqueles comunicadores que hipnotizavam os seus interlocutores, tal como uma serpente encanta a sua presa de forma a que ela se renda aos seus encantos. Assim, lá para os lados de Aveiro, Manuel tinha iniciado um relacionamento sério com Joana, vinte anos mais nova do que ele, uma empregada de uma firma com quem mantinha negócios. Já tinham inclusive um filho de cinco anos, o Miguel e, como é lógico, o seu foco amoroso tinha mudado de latitude. Flora começou a ficar mais desconfiada com as respostas de Manuel, cada vez mais evasivas e com as suas visitas, como as de um médico, pois quase já só vinha a casa para trazer mudas de roupa e pagar contas. Manuel alugou um apartamento onde vivia parte da semana com Joana e o pequeno Miguel, mantendo assim duas casas sobre a sua custódia. Flora já muito intrigada, começou a investigar nas papeladas que Manuel trazia na carrinha de trabalho e lá encontrou uma fatura de luz, com uma morada em Estarreja em nome do seu marido. Numa dada segunda-feira, partiu de comboio com destino à morada acima referida e, quando lá chegou, bateu à porta, tendo sido atendido por uma jovem mulher muito bonita. Era a Joana que, foi muito amável, convidando-a a entrar. Quando Flora lhe explicou o motivo da sua visita, Joana começou a perceber quem era realmente esta mulher simples, mas determinada que, inopinadamente, lhe bateu à porta. Pouco tempo depois, as duas mulheres choravam agarradas uma à outra e entenderam-se, perdoando-se mutuamente. Esperaram as duas que o Manuel entrasse em casa, o que foi um autêntico balde de água fria para este; de repente, o seu Mundo inteiro desabou…

Foi confrontado de forma franca por Flora e Joana, para uma escolha decisiva que teria que tomar. Havia que optar definitivamente por uma casa ou por outra, não deixando de assumir todas as suas responsabilidades, em ambos os casos. Optou pelo mais óbvio. Ficou com Joana, conferindo o divórcio a Flora que, exigiu tudo a que tinha direito e a proteção dos direitos dos seus filhos, mas nunca ignorando os direitos de Flora e do seu filho, que jamais ignorou.

Com o decorrer do tempo, Manuel foi ficando mais velho, doente e sentiu que Joana já tinha outros interesses divergentes, um amante, afinal a diferença de idades tendia para isso, era inevitável. Tratava-se de um filme já muito rodado e com final facilmente antecipado. Manuel ficou doente, foi posto de parte e sentindo que a morte se aproximava foi visitar Flora e os seus filhos. Perante o drama de um homem em desespero e desamparado, foi aceite de novo pela ex-mulher e pelos filhos. Só perante a impotência da falta de saúde e às portas da morte, Manuel recebeu, talvez, o maior ensinamento da sua vida… quem ele perentoriamente abandonou, foi quem o acolheu no leito de morte, com o aconchego que só uma verdadeira família sabe proporcionar. Manuel teve duas famílias, mas só uma o foi na verdadeira aceção da palavra… há viagens na nossa vida que não devemos fazer sob pena de nos perdermos… há mar e mar, há ir e voltar.

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