ELISABETE SALRETA |
Vivemos num mundo em que se permite que o vizinho morra sozinho na sua cama e só seja descoberto quando o seu eflúvio se torna insuportável aos demais. Ai, quando o pobre incomoda o nariz do vizinho, alguém se digna a dar-lhe um espaço na memória.
Vivemos num mundo de solidão, de egoísmo, egocentrismo e chamamos-lhe civilização. Somos livres, dizem. Somos? Ou somos escravos de um sistema que mata a essência do ser humano que se pauta exactamente pelo facto de sermos, intrinsecamente seres sociais?
Este alheamento doentio não só se aplica ao vizinho, como a tudo o que nos rodeia. A natureza sofre porque ninguém se preocupa. Mas também, vivemos demasiado tempo fechados para a explorarmos, no bom sentido, ou a aproveitarmos. Deleitamo-nos com fotos fantásticas e tantas vezes resultados de manipulações e montagens, de lugares exóticos, em detrimento de os ver a olho nu. O olho humano abarca uma resolução e é capaz de se aperceber de pormenores que se desvanecem nas capturas digitais. A imagem digital não tem cheiro, não tem o calor, a humidade, o vento, a brisa ou o sal do mar. Vivemos num mundo de faz de conta. Cada vez mais aspiramos pela felicidade e somos a cada segundo que passa, mais infelizes. Vivemos sozinhos no meio de uma multidão.
Essa sociedade mata. Cada vez mais existem as depressões. Todos os que tentam levantar a cabeça e fazer diferente, são ostracizados e apelidados de doentes mentais.
Mia estava na valeta, enrolada sobre si própria, cega da fome e dos maus tratos que tinha sofrido. A dor ensurdecia-a. Também estava surda daquela paulada que lhe fez explodir o tímpano. Esperava. Esperava apenas que a dor passasse. Enrolou-se ocupando o mínimo de espaço a esconder-se do mundo.
Tantos passos por ela passaram naquelas horas que ali esteve perdida. Tantos carros com as suas rodas grandes, camiões barulhentos. Por pouco quase a pisaram e ela encolheu-se mais.
Uma mão tocou-lhe. Tocou-lhe de novo. Protestou como que a dizer – larga-me na minha dor. Mas a mão insistiu e rodeou os seus ossos que quase rompiam a sua pele tão fina. O seu pelo estava áspero, sujo, sem réstia e brilho. O seu corpo tinha já o frio da morte. Aquele frio que vem de dentro, nada parecido com o frio do inverno. Outra coisa.
Tonta, cega, desnorteada, sentiu-se aterrar num tecido macio. Ouviu ao longe uma voz meiga que a mantinha acordada. Começou a fazer o que ainda conseguia fazer. Ronronou o mais alto que conseguiu, pois não se ouvia. Abriram-lhe a bota e obrigaram-na a beber um líquido pastoso, parecido com o leite da mãe do qual mal se lembrava. Não conseguia mexer-se mas esforçou-se por engolir as gotas que lhe punham na boca. Até que com a força que lhe restava, agarrou sofregamente aquele tubo cheio de leite. Queria mais, mas não lhe deram. Caiu num sono profundo e embora a fome tivesse voltado, tinha agora uma esperança.
À noite já a Mia dava uns passos. Comia sofregamente e entre colheradas de carne de frango, mordia a toalha que a cobria. Fazia tamanha força como se não pudesse desperdiçar um pedaço que fosse. Comia o pouco que lhe davam, mas muitas vezes, para que o seu corpo se fosse habituando de novo a trabalhar. Deram-lhe banho. Sentiu o seu corpo mais leve e confortável. A sua velha vida de sofrimento ia ficando lá fora aos poucos.
Mia foi apanhada numa valeta de uma estrada onde passavam muitas pessoas e camiões. Não se mexia e só ao segundo dia conseguiu manter-se de pé. Só ao terceiro dia começou a fazer os seus passeios pela casa. Mesmo assim, começou por andar em círculos sobre si mesma, sempre para o mesmo lado. Aquele para onde estava enrolada naquele buraco. Vê muito mal e parece-me surda de um ouvido que chegou completamente negro por dentro e onde ela não deixa mexer. No seu corpo eram apenas ossos que pareciam querer romper a pele a todo o momento. O seu olhar estava fixo, sem brilho, sem que a retina se mexesse. A pele do seu ventre estava colada aos ossos das costas, num buraco. Tinha cerca de 400 gramas, pesadas numa velha balança da cozinha. Tive de lhe abrir a boca para a alimentar. Quando começou a comer, mordia indiscriminadamente, cega. Mordia a borda do prato, o pano que a enrolava. Mordeu o meu dedo até fazer sangue, pensando que era comida. Só bebe algum líquido que seja quando lhe dou leite com uma seringa. Gosta de apanhar sol. Ao quarto dia começou a tentar lavar-se, mas cai, sem forças. Tropeça com as patas traseiras. Mas já lambeu o meu dedo. Faz um ronrom descomunal e dorme agarrada a um peluche.
Impressionou-me o seu corpo frio. Naquela manhã em que a alimentei com apenas 10 ml de leite, com uma seringa, nunca pensei que ao chegar a casa ao final do dia, ela ainda estivesse viva. Mas estava. É uma lutadora.
Quanto a quem por ela passou, não consigo deixar comentário algum.
Um relato de uma "amiga" felina linda e querida, que sofreu imenso, até que a nossa humanitária poetisa Elisabete Salreta acolheu!-a em sua casa Um exemplo, mais um, sobre os dramas que os animais sofrem antes de ter a protecção de quem gosta deles!
ResponderEliminarParabéns por este texto, mais um, mas especialmente pelo seu acto e bem-haja pela ternura que dá, Elisabete Salreta!