MIGUEL GOMES |
De aparição em surgimento, sem que se negue o sentimento, muito há a fazer para que da vontade se passe ao culto. No entanto, quando a vida procrastina os planos de alguém, nada mais parece haver a fazer do que subir os degraus de um santuário com maior ou menor custo. Por isso, encosto-me à parede ensombrada que o Sol permite e aprecio a paisagem como quem se enamora por um jardim. O Santuário ainda não transpira, mas eu sim.
Percorro os corredores de mármore, faço por não olhar para o chão, evitando ler os nomes de quem quer que tenha sido sepultado ali. Não pela falta de respeito, sabe-se a pessoa ausente dali, mas porque ninguém, tridimensionalizado ou não, merece o seu nome lido olhando para baixo.
As promessas estão enroladas em papel alvo, uns pautados, outros quadriculados, dependendo talvez da tendência linguística ou matemática de cada pedinte ou, parece-me o mais lógico, porque qualquer papel é bom para escrever num português esquecido pelas diferentes articulações de palavras, consoantes e vogais, que se estendem por diferentes cantões e países. Deus que tudo sabe, dispensaria tudo isto, mas pode existir uma tendência santificada, uma espécie de concurso entre as três figuras onde vi mais papéis (São Judas Tadeu, Menino Jesus de Praga e São José). Será porque as outras figuras dispostas na catedral estão altas demais para a estatura média do português?
Saio do bafiento local, a falta de aragem torna a respiração mais pastosa, como se além das promessas também ardesse a cera das coisas que tenho por dizer e que vão por aqui, presas e pigarreadas na glote.
O cerário é o meu próximo caminho. Aquele grande paralelepípedo de ferro forjado, com uma pequena entraída (mistura de entrada e saída), exibe a quem se aproxima uma espécie de caixa negra de promessas e fés, queimadas em altas velas de cores esbatidas pela fuligem e pelo esforço com que o fogo queima o pavio e desfaz a cera colorida de quem se encomenda a Deus.
Habituada visão à mudança de luminosidade, olho à direita e vejo-o ali, deitado. Entreabrindo os olhos, fita-me por detrás de uma íris luminosa. Ter-se-á assustado com o barulho das minhas sandálias? Pensaria que pelos pés assandalizados estaria um salvador prévio por estas passagens há dois milénios? Aquele olhar por entre a negridão do local contrasta em termos metafóricos que escuso redigir. O tecto escuro e o qualquer preparado que tenha sido aplicado desfaz-se em pétalas metálicas e negras que caem sobre as velas e a cera derretida. Ali, em cinzas deitado, um grande menino Jesus, sujo e magro, amortalhado nas vestes gastas e sebentas, dorme envolto em si como quem se abraça para espantar a solidão. Aproveitando a constante temperatura amena das velas ardendo na noite, ajeita-se puxando e ajeitando as promessas sobre si e volta a fechar os olhos claros e profundos, enquanto me sobra apenas a força para atiçar o próprio lume e, sem papel, rabiscar umas linhas e pedir-Lhe que me faça compreender naquilo que escrevo.
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