terça-feira, 18 de julho de 2017

ANOMALIA

REGINA SARDOEIRA
Fui ao dicionário procurar o significado e a origem do termo anomalia. Eis o que encontrei:

"anomalia 
a.no.ma.li.aɐnumɐˈliɐ, ɐnɔmɐˈliɐ
nome feminino
1. carácter ou estado de anómalo
2. irregularidade
3. BIOLOGIA desvio do tipo normal; anormalidade
4. excepção à regra; singularidade
Do grego anomalía, «desigualdade», pelo latim anomalĭa-, «irregularidade», pelo francês anomalie, «idem»"


Fiquei satisfeita com esta busca, visto ela corresponder ao sentido que sempre dei à palavra. E, como o domínio linguístico é um dos que mais me apraz, quer para pesquisa, quer para utilização, decidi tratar uma vez mais do "mundo misterioso das palavras" . 
Dizer que determinada situação é uma anomalia classifica-a, desde logo, como irregular, em desvio do normal, excepção à regra, ou desigual. E todos estes aspectos são relevantes em função de quê? Daquilo que é normal logo, de acordo com a norma, do que está estabelecido, quer pela natureza, quer pela sociedade, quer por ambas. 

É anómalo, por exemplo, um dia de extremo frio em pleno verão, ainda que uma investigação meteorológica possa analisar o facto e esclarecê -lo; é anómalo nascerem gémeos siameses unidos, por exemplo, pela cabeça; é anómalo, ainda, um homem vestir-se de saia ou vestido, por norma, como é anómalo uma mulher ter barba. E no entanto, tais factos ocorrem e logo estabelecemos padrões (necessitamos deles) e se, durante o verão, começam a surgir demasiados dias frios, ou se os gémeos siameses se vulgarizam ou os homens de saia ou as mulheres de barba, logo nos apressamos a dizer que tais factos são normais e que, por isso, devem ser aceites como novas formas de ser ou de estar. A anomalia é, deste modo, suprimida, integrada nos contextos normais ou ela própria constituindo outra normalidade. E assim deixam de ser importantes os padrões, as regras, as leis pois uma anomalia cedo ou tarde adquire o estatuto, ela própria, de regra. 

Thomas Khun Cincinati 1922 - Cambridge 1979, um epistemólogo do século XX, ao efectuar a análise filosófica da evolução da ciência estabeleceu os seguintes momentos: ciência normal, ou aquela que permite aos cientistas usar um certo paradigma e, na sua posse, interpretar o mundo; a anomalia, quando uma brecha no paradigma revela uma impossibilidade científica de compreensão dos factos; a ciência em crise, a qual corresponde aos momentos em que a comunidade científica procura ajustar a anomalia ao paradigma ou investigar a anomalia e tirar daí conclusões para alterar o rumo da ciência; finalmente, a recuperação do paradigma, posto em causa pela anomalia, ou a ruptura do anterior paradigma e a sua substituição. 

Vemos, deste modo, a importância do incidente anómalo, quer para abalar as certezas do paradigma e pô-lo à prova, quer para assumir a anomalia, enquanto tal, promovendo a evolução científica. 
Um médico sabe exactamente o que é uma anomalia porque, afinal, o seu mister, a sua arte, enfim, conduzem-no a lidar com elas, diariamente, a procurar compreendê -las e a restituir a normalidade ao organismo afectado por elas, repondo a saúde. E se um médico refere uma condição, seja ela qual for, como sendo uma anomalia, se, inclusivamente, um indivíduo o procurou por sentir em si a presença de um sintoma anómalo, o dever do clínico é procurar a cura. 

Durante séculos, a homossexualidade foi considerada uma doença, física e mental, acrescida da conotação pejorativa com que a sociedade rotulou essa condição. Logo, o homossexual procurava ajuda médica para curar-se, reprimia os impulsos anómalos ou, à margem da sociedade e das suas normas, dava satisfação aos seus impulsos. Ele próprio se castigava e se sentia diferente, anómalo, portanto, acedendo a um submundo de onde emergia carregado de culpa. 

Nas últimas décadas, assistimos à progressiva reintegração desta e de outras minorias sociais, e hoje alguém que aluda à homossexualidade como sendo uma anomalia é taxado de preconceituoso e, eventualmente, levado a tribunal, por isso. Como foi possível, no espaço /tempo de um século, a homossexualidade passar de crime punido pela lei, de doença psiquiátrica grave, de distúrbio biológico, a respeitável e correcta afirmação da sexualidade humana, diferente, mas legítima e normal? 

Oscar Wilde (Dublin 1854 - Paris 1900) , o célebre escritor britânico de origem irlandesa, era homossexual e contudo casou e teve filhos; porém, a tendência falou mais alto e foi tendo amantes, normalmente rapazes mais jovens do que ele, até ser levado a julgamento,acusado pelo pai de um deles, e, por essa razão, condenado a trabalhos forçados. Com ele sofreram os seus, porque a mulher apoiou-o e não pediu o divórcio. Mas a sociedade conservadora da época renegou-o e (diz-se) durante muito tempo nenhuma família britânica dava o nome de Óscar aos seus filhos. 

Distúrbio biopsicológico, anomalia, erro da natureza, doença ou, afinal, uma subespécie da normalidade humana? Orientação sexual diferente, perversão, desvio ou condição absolutamente legítima, francamente normal do modo de ser humano? 

Seja como for, não vejo qualquer razão para discriminar e punir alguém, apenas porque é homossexual; de igual modo, não vejo razão para louvar ou celebrar seja quem for, apenas por causa dessa condição íntima e pessoal. Mas sei, porque já o ouvi suficientes vezes, que todo aquele que, aparentemente, aceita os homossexuais como seus amigos e nada objecta face a essa maneira de ser, detestaria descobrir que um dos seus filhos é homossexual. 

Esta conclusão conduz-me à tese da anomalia. Hoje, o homossexual é aceite, a lei protege -o, não precisa de esconder-se e pode mesmo constituir família; mas, lá no fundo, todos sabem ( incluindo os próprios) que um erro da natureza fez nascer impulsos anómalos nesses indivíduos e que a sociedade precisou de forçar-se a si mesma e aos seus preconceitos para aceitá -los como iguais.

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