REGINA SARDOEIRA |
Quando Sócrates afirmou, perante os cidadãos de Atenas, "Eu só sei que nada sei", pretendia dar testemunho não somente da sua ignorância mas também da sua sabedoria.
Diz-se que, surpreendido com as notícias que lhe chegavam do oráculo de Delfos, segundo as quais ele seria o homem mais sábio de Atenas, Sócrates acedeu a duas perspectivas de auto-questionamento. Por um lado, a sua crença no deus Apolo, segredava-lhe a certeza da exactidão das palavras do oráculo - o deus tem que estar certo em todas as suas afirmações. Por outro, ele conhecia a dimensão da sua ignorância, sabia que, quanto mais investigava, maior significado atribuía ao que lhe faltava saber - de onde resultava a consciência de nada, afinal, conhecer.
Para resolver o enigma, diz-se que o filósofo procedeu a um périplo pelas ruas de Atenas, exercendo a arte do questionamento, como era seu hábito e logo praticando a ironia - esse talento de, fingindo-se ignorante, propor aos interlocutores a solução para um sem-número de questões.
Foi ao encontro dos cidadãos, tidos como mais sábios: os poetas, os comerciantes, os juízes, os políticos . Astutamente, confrontou-os com assuntos considerados triviais, a saber, o que é o bem, a justiça, a virtude. Multiplicou de tal modo as questões, fazendo derivar cada uma delas da resposta dada, que, invariavelmente, o interlocutor perdia-se nas suas certezas, enredava-se em contradições e percebia que, afinal, o seu conhecimento acerca do mais simples era, de facto, nulo. Cidadãos proeminentes que eram, na cidade, não ousavam, contudo, reconhecer a ignorância, tanto mais que esses diálogos ocorriam na praça pública e a sua reputação ficaria comprometida. Sentindo-se injuriados, afastavam-se com rancor, partindo para os tribunais onde acabaram gizando a condenação de Sócrates. Quanto a ele, havia decifrado o enigma de Delfos. "Sim, eu nada sei, é verdade, mas pelo menos sei que não sei; no entanto, estes homens, tidos como os mais sábios, são ignorantes e desconhecem a sua ignorância. Portanto, o deus tinha razão."
Se fizermos a transposição da conclusão socrática, no século IV a. C. , para o nosso tempo, percebemos de que modo reina a convicção de conhecimento em todos os níveis da sociedade e em todos os graus da cultura. E quão poucos Sócrates se atrevem a questionar os pseudo-doutos e a praticar, em si mesmos, a dúvida constante.
Cada vez mais os pseudo-sábios emitem sentenças que eles próprios consideram irrefutáveis, não prestando a mínima atenção aos interlocutores; cada vez mais deparamos com interlocutores distraídos, pouco ou nada interessados nos argumentos apresentados com o objectivo de lhes alargar os horizontes. Aliás, poucos são aqueles que, verdadeiramente, crêem necessitar de, como disse antes, "alargar os horizontes". Por todo o lado vejo praticar-se a auto-suficiência, a convicção de que o mundo do saber é tão acessível que qualquer um pode conhecer tudo acerca de tudo.
Lamento profundamente o que está a suceder entre os jovens, incapazes de prestar atenção àquele que, de um modo ou de outro, é o seu mentor, renitentes em seguir os modelos da geração anterior- porque eles estão convictos de que os instrumentos que aprenderam a manipular lhes dão tudo o que precisam. E os educadores que lhes surgem no caminho são "velhos" cujas trivialidades - crêem eles - não se comparam à sua "sabedoria".
Porém, esses educadores necessitam também de ser educados, a fim de perceberem que o método que utilizam para passar o testemunho da sua experiência está, certamente, bastante obsoleto. Necessitam de pôr em prática, cada vez mais, a inteligente astúcia socrática, capaz de fazer o vazio no interlocutor para depois parturejar dele o saber autêntico - aquele que cada um tem por inteiro, sem suspeitar que tem.
Proponho, assim, uma revolução das consciências, em que os mais velhos acedam à prática, cinco vezes milenar, de esvaziamento mental periódico dos preconceitos em que, aos poucos, se transforma o saber anquilosado. Proponho que, à semelhança do que fez o douto ignorante de Atenas, cada um exercite em si a dúvida acerca das próprias certezas, se disponha a sondar-se a si mesmo e ao mundo que o cerca, para lá da aparência, e, mantendo desperta a sua inteligência, assim exercitada, possa tornar-se mentor credível das novas gerações.
Sem comentários:
Enviar um comentário