MIGUEL GOMES |
Aguardo a chegada das estrelas sentado desapropriadamente nesta espécie de caminho de madeira que termina sobranceiro ao areal, esperando que a noite me venha cobrir com o frio latejar que só ela sabe. Só ela.
Atrás de mim as dunas parecem bailar com o vento que faz roçar os cardos, abanando com fervor remanescências plásticas de sacos cheios de nada, apenas incúria de uns poucos seres andantes, autointitulados inteligentes, ainda presos nos espinhos e na vegetação rasteira.
Não fosse a maresia, diria estar no sopé de uma colina, pernas bamboleantes como um puto qualquer a olhar para o fundo no vale, esperando com um olhar de genuína traquinice que uma das sapatilhas se deixe desatar e vá cair ribombando em silêncio, colina abaixo.
O marulhar das ondas, o escorrer lânguido da água pela areia ainda morna depois de um dia ensopado em calor, a praia a sorver o resto de tarde que teima ainda, pelo alaranjado céu, manter-se desperta sem contudo tentar roubar qualquer protagonismo à velha actriz que aguarda atrás, no pinhal onde as árvores se agrilhoam ao solo como garras de bicho quase enterradas na pele dura de um animal. Mas o tempo sucede-se como um palco onde o cenário se confunde com as paredes e o telhado se mescla com o céu, deixando de se perceber onde termina um e começa outro.
A passos pequenos, mas firmes, vem já trajando o frio fino que se vai compor em orvalho daqui a umas horas, arrastando um manto de estrelas titubeantes como uma rainha que embora não o queira ser, por obrigação desempenha o papel e por caridade o grafia bem, o papel e o reinado. Louvo e invejo, confesso, o seu papel de errante caminheira, o périplo pelo reino, as pequenas passadas com que, no cuidado maternal para não acordar um filho no berço, vai percorrendo todo o horizonte sem que saibamos sequer dos afagos que deixa ficar nos sonhos de cada um de nós. Os confessos, quase sós.
Por hoje, sem que eu perceba o porquê, longe de merecer qualquer honraria em forma de sua companhia, detém-se de pé a meu lado. Apercebi-me apenas quando ao sentir o pousar de uma mão no ombro me assustei e, olhando para o lado, a vejo de pé, sorrindo para mim como se por magias que apenas ela, a noite, conhece soubesse ver os pensamentos que vou deixando presos nos cardos das dunas.
Enquanto o céu estranha a pausa no anoitecer ela senta-se a meu lado, o manto comprido sobre o resto do passadiço, os cardos e as dunas, o pinhal e todas as cidades, vilas, aldeias, planícies e os planaltos, os meus planaltos. Uns dormem cientes que o dia nascerá quando voltados ao corpo, outros ruborizam esforços em braçais trabalhos, subjugados, os apóstolos que limpam o lixo nosso de cada dia.
A noite deteve-se a meu lado. Parece conhecer-me bem e no olhar fundo que trocamos, soçobro no silêncio e um orvalho cai-me dos olhos. Passiva, serena, com uma ponta do manto limpa-me o canto orbital onde muitas vezes me batem à porta os mundos que nem sabia existirem. A claridade do dia que não cai faz brilhar o resto das estrelas que se desprenderam do manto e sulcam, secando, o caminho na minha cara por onde nebulei.
Levanta o braço esquerdo e parte do manto. Olho para trás assustado, todo o firmamento parece sacudido, as estrelas ondulam como se fossem simples espuma na crista da maré, do interior da noite o sorriso manso por entre as madeixas negras da noite abre-me a porta para o lado de lá do céu e, cansado, agradecido, surpreso, deixo-me cair sobre o seu regaço e adormeço, sem me aperceber que amanhã, quando acordar, a noite terá partido e de mim apenas a lembrança no pontão, pés suspensos a abanar com o vento, as mãos com as marcas das tábuas e o sorriso, salgado, de ter em mim todos os dias passados, presentes e futuros e, ainda assim, querer viver para lá do vivido.
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