REGINA SARDOEIRA |
Se eu, mulher que sou, pudesse andar sem destino e encontrar aconchegos por entre pedras e dunas e não ter quaisquer companheiros de jornada ou, se acaso os tivesse, ver neles um pequeno porto entre dois oceanos e seguir adiante… se eu pudesse… mas quem diz que não posso? Eu seguirei em frente, está na hora, e que ninguém se arraste atrás de mim e, principalmente, que não me arraste eu atrás de ninguém! Não fui feita, eu, mulher que sou, para arroubos melancólicos, não resisto por muito tempo ao travo pungente das lágrimas, sou dada ao riso e à dança… quem for da minha raça reconhecer-me-á e poderá encontrar-me, se quiser, mas quem não for jamais entenderá o chamamento urgente, jamais conseguirá deixar de rastejar, e qualquer píncaro lhe causará pavor! Eu sei - eu, mulher que sou!
Dói confrontarmo-nos com a própria inexorabilidade de estarmos a sós connosco mesmos… mas esses pequenos compromissos a dois, essas pequenas misérias do quotidiano rastejante, que posso eu ter a ver com semelhantes resquícios de existência? Por isso, aqui e agora declaro que a solidão é a companhia do meu ser e que só a ela quero e amo! Se houver alguém que soletre assim o seu nome – S-O-L-I-D-Ã-O – e que possa despir-se de todas as roupagens para se dar como um deus, então esse será o meu par da jornada… Os outros, que soletram outras designações, que vivem empalhados nas suas próprias múmias, que jamais souberam o significado da ascensão por entre nevoeiros, tempestades e sóis escaldantes, esses, que fiquem nas tendas que lhes têm servido de abrigo e que, ingenuamente, acreditam ter dotado de alicerces! Não, aqui declaro, não me deixarei humilhar por falsos deuses, que não sabem que são deuses e muito menos que se tornaram falsos, neste caminho que os verteu em homens… Porque o homem não passa de uma mistificação de deus, um ludíbrio de si mesmo, um desapontamento… Não, não os quero ao meu lado, a semelhantes fantasmas que tudo têm em si mas que, alienadamente, o deram a deus ou ao diabo… Que bem e que mal? Fora com essa moral invertida, abaixo com esses valores que quanto mais se negam mais se incrustam na pele de quem os nega… Precisarei, eu, mulher , por acaso, de roupagem? Precisarei eu, mulher, por acaso, de negar a roupagem?
Eu sabia que na origem da minha inquietação estava, não a dúvida, mas sim a certeza, este saber, urdido no divino, de que não posso dar atenção a um hálito doce, a uma pele quente, a um amplexo vibrante que tudo isso é humano, demasiado humano, demasiado próximo do símio de que quisemos todos fugir para nos elevarmos nas alturas do pensamento, mas onde vamos todos cair quando um brilhozinho nos encandeia a lucidez da caminhada!
Ah, agradeço-vos, agradeço-vos do fundo do meu coração humano, terdes feito com que se abrissem as comportas de mim… mas nada mais podeis fazer, porque não estais prontos para vós mesmos e não vos vejo seguir o caminho que a vós mesmos poderia levar…
Além disso, que sei eu? Eu, mulher que sou? Ainda que chegásseis lá, ao vosso cume, ainda que percebêsseis que a caminhada é para cima e não esse mergulho espantoso nos eternos abismos de um conformismo auto complacente, quem sabe se seríeis capazes de ver as vossas próprias estrelas abaixo de vós, desmaiadas no mar da vossa grandeza?
Vislumbrei-vos, percebi-vos e amei-vos. Mas quereis vós estas pedras preciosas que brilham no cerne de vós, ou preferis os diamantes falsos da rotina onde vos enleais em compromissos estéreis? Estéreis, todos eles, nem um tem a substância que lhes inventais para fugir do fogo sagrado que para vós ergui! Nem um! Negastes a única senda capaz de vos erguer dos pântanos de vós mesmos, negaste-a subtilmente, sem saberdes tão pouco que a estáveis negando… Quem achais vós que eu sou? Como admitistes que eu ia ficar, na sombra, à espera que despertásseis?
Aqui me encontrastes e aqui tereis que vir de novo se quiserdes perceber o que não deu certo… e, sem dúvida, mesmo assim não lograreis entender, pensareis sempre: mas que foi que fizemos, de que somos acusados...porque todos se julgam inocentes e puros, todos pensam sempre que fizeram tudo o que estava ao seu alcance… certos de que têm apenas um alcance limitado, certos de que qualquer meio esforço já é todo o esforço que são capazes de fazer… onde estais vós agora, vós que me procuráveis obsessivamente, onde estais, então , onde está a vossa voz, a vossa imagem, a vossa palavra? Não os vejo! Imperativos fátuos regem a vossa existência, objectivos que credes supremos comandam o vosso dia e nunca ireis descobrir onde, afinal, falhastes!
Nem interessa que o descubrais, que importa isso? Nascestes para o humano, agrada-vos tudo o que é terreno, viveis soterrados nas folhas mortas de vários Outonos que deixastes consolidar em vós sem dardes hipótese ao esplendor diurno do sol estival!
Vivei! Vivei esses Outonos, enrolai-vos em sucessivos mantos de poeira e trevas, confundi as vossas metas pequeninas com objectivos… eu não posso esperar outra eternidade, não posso continuar a flutuar no vazio numa espera que nada me promete! E como podia prometer?
Adeus, adeus, adeus! Digo-vos adeus e largo-vos de mim porque vos amo e nenhuma meia-luz se compadece de semelhante esplendor… Como podeis dar-me este silêncio, mandardes-me um beijo e fechardes-vos a mim sem mais palavras, e pensardes que é assim que deve ser? Para lá do bem e do mal… vós?
Esses, são os deuses, esses, são os eleitos, que criaram o seu bem e o seu mal para neles caber todo o valor possível… TODO O VALOR… TODO!
Se não podeis dar-vos todo, não inventeis slogans, dizei-o!
«Ó Zaratustra, louco do terno coração, sempre embriagado de confiança! Mas sempre assim foste, sempre te aproximaste familiarmente das coisas terríveis.
Quiseste acariciar todos os monstros. Bastava um hálito quente, um pouco de pelagem macia ao redor das garras – e logo estavas pronto a amar o monstro, a atraí-lo a ti com as tuas carícias.
O amor é o perigo dos mais solitários, o amor de todos os viventes, desde que vivam. Por certo é motivo de riso ver até que ponto sou eu louco e modesto em amor.»
Friedrich Wilhelm Nietzsche, Assim Falava Zaratustra
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