JOANA BENZINHO |
Em grande parte dos países de África que conheço, seja na costa do Indico ou na costa Atlântica, norte de África ou sul, invariavelmente se encontra o mesmo estilo de artesanato. E não é por este ser igual de um país para o outro. É porque se tornou um nicho de mercado para os produtos made in china esta coisa de colocar artesanato feito fora na mão dos vendedores a um preço que os convence a não perder tempo a produzir. São animais da selva ditos de pau de sangue ou pau preto que não passam muitas vezes de uma matéria composta pintada com as tonalidades da madeira; os panos tradicionais masais, no Quénia, com a etiqueta indicativa da proveniência asiática; as réplicas de estatuária e máscaras estilizadas que não enganam quanto à origem nem o comprador mais desatento; os colares feitos de missangas de plástico a substituir as sementes que geralmente dão origem a lindíssimos colares e pulseiras em muitos dos países deste continente. Mas há ainda quem resista. Há países onde os artesãos fazem do seu modo de vida o moldar da madeira, o uso da máquina de costura de pedal para fazer panos, vestuário, bolsas e até sapatos, os frutos da terra para criar bugigangas. A Guiné-Bissau é disso um grande exemplo. Entramos no mercado artesanal dos Coqueiros, em pleno centro da capital, e encontramos os homens (sim, é verdade que só lá encontramos homens!) a trabalhar a madeira transformada em lindíssimas esculturas, a fazer pulseiras com sementes, a fazer o djambé ou o balafon (espécie de xilofone) com a arte e a paciência de quem só sabe amar a música, a fazerem os colares de várias voltas em panos tradicionais, as carteiras, os vestidos que só encontramos aqui e, claro, nunca dois iguais. Há também quem pinte a óleo ou quem mantenha o carvão aceso para ir ligando os metais que trabalha e transforma como que por magia em bonitas peças de ourivesaria.
Num destes dias procurava um anel no cantinho do ourives e esperei pacientemente na fila que atendesse três rapazes que ali foram mandar fazer anéis para oferecer no dia de São Valentim às suas namoradas. Como soube bem aquele tempo ali sentada, num banquinho à sombra a apreciá-lo a fazer as alianças moldadas e trabalhadas com uma mestria única e sempre a acompanhada de perto pelos olhos ansiosos do comprador. Num outro ponto de Bissau, no Centro de Arte Juvenil, criado por um padre italiano entretanto falecido, vários jovens recebem formação em carpintaria e escultura em madeira. Num alpendre forrado com um dos móveis mais encantadores que já vi, cada um tem o seu cacifo onde guarda as ferramentas (a faca, a lixa e mais dois ou três artefactos simples) e em comum têm os toros de madeira espalhados cá fora, normalmente pau sangue. Fazem um pouco de tudo: camas com cabeceiras ricamente trabalhadas, estátuas representativas das tradições das distintas etnias existentes no país, aves e animais com simbologias várias , presépios, palhotas, entre muitas outras coisas. Vou frequentemente a estes dois locais, sagrados para mim nas minhas passagens por Bissau. Já conheço os artesãos, sinto-me uma priveligiada por poder consumir e partilhar com outros a riqueza da sua arte. E fazem-na por tantos motivos para além do dom natural... uns porque querem juntar dinheiro para emigrar, porque porque têm que ajudar a mâe a criar os irmãos mais novos ou até porque foram retirados da vida errante por mãos amigas. Recentemente esperava que terminassem de me fazer as estátuas encomendadas e um dos artesãos chamou-me timidamente à parte para me mostrar uma última ceia que tinha feito num maciço pedaço de madeira, talhada em relevo com uma perfeição e uma beleza raras. Disse-me que tinha sido encomendada por um pessoa que não voltou para a levar. E tinha-a ali, enrolada num saco de plástico à espera de alguém que a quisesse comprar. Enquanto me mostrava o trabalho, disse-me com os olhos marejados de água que necessitava urgentemente de vender aquela peça para poder pagar a escola dos dois filhos, ameaçados de lhes ser vedada a entrada nas aulas por falta de pagamento da propina. E assim vim eu com uma compra extra (e confesso que ligeiramente ao lado dos meus gostos pessoais, mas que funcionou como um belíssimo presente) com a nítida sensação de que ali encontramos verdadeira arte com sentido e com sentimento, feita por mãos calejadas e sofridas que trabalham os materiais com o respeito e o amor que estes merecem. Também fora a capital não é raro encontrar artesãos que se dedicam à escultura, como por exemplo no Arquipélago dos Bijagós. Numa destas ilhas encontrei, há uns anos, um velho homem que esculpia um Irã (imagens divinas feitas por homens "designados", seguindo uma série de rituais) e, tinha ao lado dele um pedaço de madeira já começado a trabalhar que me deixou curiosa. Trocadas umas breves palavras de circunstância sobre o que fazia, disse que daquele pedaço de madeira caído ia nascer uma estátua para vender mas que ainda precisava de mais dois dias para a concluir. Voltei 48 horas depois ao "local do crime" e regressei a casa com uma das peças de arte mais bonita que vi até hoje. Duas figuras invertidas e entrelaçadas por uma serpente, esculpidas por uma faca tosca e já sem ponta com uma perfeição e uma beleza que nenhum produto made in China conseguiria replicar.
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