MIGUEL GOMES |
A solidão molda-nos a companhia.
Transporta-nos para aquilo que não desejamos transportar, apenas e só porque não nos sabemos caminho, nem caminhantes, apenas fugazes, esbaforidos, errantes.
A solidão molda-nos a alegria.
Como agora, quando a chuva bate no vidro e eu encho o peito, faço de conta que me escondo atrás do pinheiro, sinto a áspera casca e cheiro as recordações de arrancar, na ignorância, aquelas espessas crostas, raspá-las numa pedra e moldar rombudamente um casco de um batel, um barco tímido que soltamos no primeiro regato que nos aparece e vamos, correndo, andando, ao sabor da corrente de um aguaceiro que se faz chuva premente, até vermos felizes no bom rumo de algo que nos saiu das mãos e só aí, no despertar daquele rasto de vida que cai e ao chegar ao horizonte se esvai, percebemos que estamos encharcados, esvaídos em felicidade que chove por fora e pinga por dentro.
A solidão molda o que nos acorda, a porta que se escancara e o olhar de mãe, terno, que se confunde com a rispidez dos braços que nos despem enquanto colocam a cafeteira de água no fogão, o lume brando e a sussurrar butanicamente as labaredas azuis e amarelas num tuf-tuf assíncrono que se confunde com a sincronicidade dos batimentos do coração que uma mãe tem sempre à mão.
O dia de Inverno traz a forma de um banho quente, um azuleijado tímido e coberto de vapor de água, as sombras muito espartanas que com dificuldade aderem ao embaciado espelho e reflectem o reflexo que não sei ser, tudo, mas tudo serve para nos aquecer, o abraço, a companhia, a mão, a alegria, a imensidão carcereira do infinito que prende à vida.
Quando nos confundimos com o que não existe, o passado e o futuro numa rima em riste, serve-nos o presente enquanto não nos sabemos chover, apenas precipitar sobre a tarde que se quer profícua, inócua, como o vidro comigo condensado, onde nada mais consigo vislumbrar além da rua e das poças de água que me convidam a navegar, erradamente com certeza, sem qualquer assunto para escrever que não seja este, o pequeno que corre lá fora alheio aos avisos pré-programados maternalmente, o sorriso e o calcar das poças de água, as mesmas que lhe respondem com largos e altos salpicos nas pernas e a lama que se vai desprendendo das botas e salta antigraviticamente para o rabo e costas, o barco que vai abanando porque perdeu a tosca vela e agora apenas a vontade e a alegria do puto por ele vela e, antes que se penda para o bueiro fajuto e cheio de bocados de lixo de gente, ou gente de lixo, ultrapassa-o, ajoelha-se no molhado e apanha-o, aquela preciosidade em casca de pinheiro, sem preocupação de dinheiro nem sentido parco, porque ele é a solidão e talvez eu seja o barco.
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