REGINA SARDOEIRA |
O "sistema de ensino" é uma expressão utilizada para designar um vasto e importante conjunto de sectores, de meios, de pessoas, de literatura, etc.; e é de tal modo abrangente que diz respeito a todas as pessoas, envolve praticamente todas as idades é, em suma, um perfeito micro-cosmos da macro - sociedade em que qualquer um habita. Na prática, o funcionamento do sistema de ensino reproduz o funcionamento de todas as restantes instituições sociais e é reproduzido por elas; pelo que, sociedade e ensino constituem uma relação dialéctica e a sua plenitude depende de um são equilíbrio entre eles.
Quando utilizo a palavra "ensino" pretendo referir-me a um conjunto vasto de situações, de actos, de personagens. Especificamente, o ensino apoia - se em necessidades civilizacionais criadas pelos homens, no tempo, necessidades consideradas secundárias, pois decorrem da cultura, e a sua falta não põe em risco a sobrevivência. Mas - sabemo-lo - o homem é muito mais do que um primata superior, refém de necessidades básicas, evoluiu no tempo e no espaço, criou culturas e transformou - se com elas. Hoje, o mundo que para si criou exige - lhe competências que decerto não estavam inscritas no ADN original da espécie; e é por essa razão que a necessidade de ir à escola, adquirir o que falta ao humano incipiente de 5/6 anos de idade, se transformou num percurso necessário e numa obrigação civilizacional.
"Ir à escola" - eis o que devem fazer todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos se desejam ser pessoas do seu tempo, perceber o mundo em que vivem e dar o seu contributo.
Nesta frase estão contidos, de forma sintética, os objectivos de todo e qualquer sistema de ensino, e são eles: ser um homem /mulher do seu tempo, perceber o mundo em que vive e tornar -se parte activa do seu meio. Para consegui -lo, o sistema de ensino precisa de estar adequado ao tempo, pois este é o denominador comum da síntese. Uma escola, um corpo docente, um conjunto de currículos desfasados da realidade actual, em ordem à projecção no futuro, não faz qualquer sentido.
Não me parece que, no tempo de hoje, uma criança de 5/6 anos esteja muito predisposta para lidar com os livros e logo com a leitura e a escrita. Vejo a infância absolutamente refém da tecnologia audiovisual, vejo - os a aprender as palavras, os conceitos, os hábitos, as relações sociais através de instrumentos como a televisão, o computador, o tablet , o telemóvel, com os quais lidam perfeitamente, desenvolvendo perícias que, de modo nenhum serão compatíveis com o acto de pegar num lápis e aprender a desenhar as palavras ou de aprenderem o gozo e o prodígio de as conseguirem reconhecer nas páginas dos livros, lendo.
A questão que levanto é a seguinte: deverá a escola dar continuidade aos instrumentos que a criança já manipula habilmente quando chega ao primeiro ano do ensino básico, introduzindo as demais práticas escolares a partir daí ou deverá romper com eles, apresentando - lhe os livros, os cadernos, os lápis como instrumentos preferenciais para a sua aprendizagem?
Levar a criança a treinar as mãos na tarefa de segurar um lápis de modo correcto e aprender, treinando todos os dias, a desenhar as letras e a formar com elas palavras e frases é, sem dúvida, uma actividade exigente desencadeadora de estimulação de áreas cerebrais importantes, úteis na definição do que significa ser humano. Atrofiar a perícia desenvolvida ao longo de milhares de anos que teve início na libertação da mão da locomoção e progressiva e cada vez mais especializada utilização dos dedos em tarefas pormenorizadas não será um atentado àquilo que fez do homem aquilo que é hoje, estabelecendo a comunicação entre a mão e o cérebro?
Afigura - se que a criança deve continuar a aprender a escrever e a ler, sendo utilizados nessas aprendizagens os recursos simples de todos os tempos: cadernos, lápis, livros. Mas não creio que a escola deva cortar cerce com os instrumentos tecnológicos de que eles trazem já conhecimento e perícia. Estabelecer a conexão entre a prática ancestral de um saber fazer centrado no livro e a recente aquisição de processos tecnológicos, capazes de estimular áreas cerebrais antes incipientes, pode ser o segredo de desenvolvimento do humano e a sua afirmação para além das máquinas. Pode ser que, daqui a algumas décadas, os livros, tal como ainda os conhecemos, tenham ficado obsoletos e não representem já um papel predominante nos locais de aprendizagem. Há todo um conjunto de estudos que apontam nessa direcção. Mas eu creio firmemente que o sistema de ensino deve manter esse recurso inestimável, pugnar para que o livro, impresso com tinta e em papel, prossiga na sua função. Não pode, contudo, resumir-se aos livros a busca pelo saber.
Quando assim me exprimo, não tenho em vista somente os recursos audiovisuais e tecnológicos que, aliás, há muito fazem parte dos apetrechos de qualquer escola. Refiro - me a tudo o que, existindo, materialmente, fora do edifício, circundando o espaço físico da construção, onde se sucedem salas de aulas, corredores, gabinetes, recreios, bibliotecas, diz respeito intrínseco à aprendizagem.
"Ser homem do seu tempo" obriga a sair das salas de aula para investigar o que exista ao redor. Não basta projectar filmes ou documentários, mostrando o que ocorre pelo mundo e permanecer na sala de aula, é necessário sair, caminhar em direcção aos sítios onde a vida se desenrola e de onde vem e para onde vai o aprendiz. Ele deve assistir à vida, sendo parte dela e não observando - a, passivamente, encerrado numa redoma. Decerto deixarão de ser importantes todos esses edifícios onde as crianças assistem a aulas, mais ou menos entediadas, e, tarde ou cedo, a sala de aula deverá ser substituída por uma espécie de laboratórios vivos onde elas aprendem a perceber quem são, observando, experimentando, diversificando práticas.
Aprenderão a continuidade entre elas próprias e o resto do mundo, não somente porque o leram ou viram representado mas sim porque estiveram nele, participativamente. A seguir poderão fixar experiências, escrevendo-as, porque adquiriram essa competência, desenhando - as porque a mão encontrou esse caminho, inventando novos mundos porque a imaginação cumpriu o seu desígnio.
Falo, pois, de uma escola aberta ao exterior, sem muros ou paredes isoladores da vida que pulsa lá fora e deve ser a força motriz de todo o ensino. Desse modo, as crianças apreenderão o mundo em que vivem e de que reconhecem fazer parte, terão direito à participação nele de um modo efectivo, não terão necessidade de esperar anos até poderem ocupar um lugar no mundo: porque a escola, abrindo-as ao tempo e ao espaço, lhes outorgou bem cedo essa possibilidade.
Ao longo do tempo, nesta pesquisa e investigação práticas do que é o mundo, o seu mundo, a criança e o jovem estarão cada vez mais capazes de entender qual vai ser, aí, seu papel e descobri-lo -ão com extrema facilidade: porque desde cedo mantiveram o contacto com ele.
Pode parecer utópica esta caracterização sumária do que deve ser a escola e de como deverá orientar - se o sistema de ensino. Apesar disso, e embora possa levar muito tempo até que todos se convençam da premência de mudar o sistema, esta abordagem é uma meta possível. E creio firmemente que muitos dos problemas de que se queixam os professores, as famílias e outros agentes sociais ligados à escola, cessariam inevitavelmente.
Há indisciplina, é um facto, e tem de haver. Uma sala de aula é um espaço inóspito e apertado, as crianças sentem as suas energias bloqueadas, demasiados estímulos externos lhes solicitam a atenção e o desejo. Abram - lhes as portas, deixem-nos aplicar as forças anímicas em actividades que elas possam sentir como suas - e não haverá mais indisciplina. Também há desinteresse pelas matérias e as crianças mostram o tédio em muitas atitudes e respiram de alívio quando a aula termina. Impliquem - nas a sério nos actos de aprendizagem, dêem -lhes tarefas e façam -nas desenvolver temas que lhes digam, essencialmente, respeito - e o tédio dará lugar ao entusiasmo.
Sei de tudo isto porque o fiz, durante muito tempo - até o sistema que nos governa decidir aniquilar o livre pensamento e apertar uma mordaça a professores e alunos. Não sei até que ponto eles sentiram esta opressão e o esvaziamento progressivo da tarefa recíproca que envolve a díade, docente/discente. Quando comecei a perceber que o modo como fui impelida a tratar a disciplina suprema do pensamento, da crítica, da autonomia, da preparação para a vivência na sociedade, no mundo - falo da Filosofia - a esvaziou totalmente do seu poder, percebi também que estes meus alunos de agora podem sair de uma aula minha alienados. E ainda que, se acaso lhes perguntarem o que estiveram a tratar na aula, eles não tenham nenhuma resposta a dar.
Tenho, pois, as duas experiências : estive para além do meu tempo e pude trazer a Filosofia à vida, fazendo com que as minhas lições tivessem o poder de perdurar na direcção seguida por muitos alunos. Entretanto o tempo recuou e obrigou - me a ser a professora que não sou; e é por isso que entendo os alunos na sua indisciplina, no seu tédio e desinteresse e sei como seria possível salvá - los, salvando, eventualmente, o mundo dos homens.
Sem comentários:
Enviar um comentário