LUÍS VENDEIRINHO |
Do alto do seu metro e sessenta de ossatura, aos olhos água-marinha nada lhes escapava: os trocos quando comprava as notícias do dia, o silêncio dos vizinhos ante a sua saudação, o céu se prometia sol, ou chuva, os estendais do logradouro com as bandeiras do asseio, os lírios do jardim do bairro se floresciam, as rugas que o tempo ia desenhando quando não se reconhecia no espelho do lavabo. Não tinha agenda pessoal, nem calendário na parede da casa onde vivia. O telefone emudecera, a campainha da porta só dava de si se o carteiro aparecia com as facturas da água ou da luz, a colecção de postais não prometia herdeiro. Tinha no roupeiro um fato, que engomava quando era preciso, apenas para os dias do seu aniversário, quando soprava as velas sem ter presente quem o aplaudisse, ou para levar a público em dias de eleições, sem convicção, e orara para que fosse nele bem embrulhado, apenas com a medalha de serviço como bom soldado na lapela, depois da encomendação da sua alma, não sabia se merecida como a medalha. Regava os vasos que debruavam os lances da escada, cujos degraus eram a sua sina, punha migalhas de pão no parapeito da janela para os fiéis pardais, cujo matinal canto era a sua sina, fazia as palavras-cruzadas do jornal, cuja adivinhação era a sua sina. Dava esmola aos pobres, sonhava na companhia das músicas que o rádio de cabeceira destilava, ria-se do seu papel de soberano no reino das fantasias. Até ao dia em que comprou um bilhete premiado na tabacaria do bairro. O senhor Adão passou a ser saudado, pagava as contas próprias e do alheio, a sua opinião era tida em conta, e tinha já uma mula chamada mercedes que carregava as suas extravagâncias ante a admiração pública. Houve um dia em que as flores murcharam nos vasos da escada, em que os pardais deixaram de o visitar e o senhor Adão se achou no direito de não responder à saudação da sua pessoa. Quando um dia procurou no seu dicionário, que apodrecera entre bibelôs, o significado da palavra felicidade, e folheou, folheou, folheou e viu que pertencia a um mundo onde os lírios vingam no cimento e a chuva cai sobre os oásis. O senhor Adão queria morar no metro e sessenta, mas os seus olhos água-marinha eram já cinzas.
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