REGINA SARDOEIRA DR |
Sempre que me perguntam que livro, música ou filme mais me marcou na vida, confesso que tenho extrema dificuldade em responder. E, não raras vezes, respondo, para desgosto de quem assim me questiona, que, provavelmente, será o próximo, ou então, o que vier, a seguir ao próximo. Não equaciono as marcas da minha vida, começando por detrás, e detendo-me aí, mas almejando que o presente e o futuro me reservem novos motivos para me maravilhar e aprender.
Porém há, de facto, livros a que regresso (falemos de livros), livros que por mais lidos e interpretados e parafraseados ou citados, me dão sempre matéria nova de pensamento ou motivo inspirador para o momento vivido, pelo que os trato como entidades mágicas, cujas páginas encerram verdades insofismáveis…sobre mim mesma!
Logo, se me impusessem a obrigatoriedade de criar uma lista, onde assinalasse as obras da minha vida, inevitavelmente, o primeiro lugar caberia a “Assim Falava Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche.
Mas este primeiro lugar tem mais do que um significado.
Ofereceram-me o livro quando tinha 19 anos e logo fui imbuída pelo fascínio metafórico de Zaratustra, pelas palavras profundas, aqui e ali, enigmáticas, ora poéticas, verdadeiros cânticos, ora verrumantes, autênticas farpas atiradas às consciências trôpegas, e sempre o mago persa a discursar perante o mundo ou a retirar-se para a sua caverna, onde a águia e a serpente, os seus fiéis animais, o aguardavam.
O tempo correu, vieram outros livros e outras devoções, mas aquela obra de Nietzsche permaneceu o companheiro dileto. Não sei se alguma vez cheguei a lê-lo do início ao fim, capítulo após capítulo; mas tenho a certeza que o conheço intimamente e sei que, sempre que o abro, ao acaso, o texto que surge contém as palavras que precisava de ler naquela hora. Evidentemente que o fascínio por “Assim Falava Zaratustra” não pode esgotar-se nestes segredos que as palavras me revelam, sempre que procuro a solução de um enigma; parece-me mesmo que qualquer livro insignificante poderá conter um amontoado de textos e de frases que, uma vez lidas num certo momento, parecem ser a resposta aos nossos anseios momentâneos.
Friedrich Nietzsche é um escritor cuja arte atingiu um esplendor, nesta obra, que talvez não tenha sido ainda igualada; é um filósofo, cujos aforismos e sentenças contêm a profecia do nosso tempo; é um poeta, cujo lirismo se faz melodia e soa música perfeita aos nossos ouvidos. Não foi por acaso que Richard Strauss compôs o poema sinfónico, “Assim Falava Zaratustra”, vertendo em música os cantos do profeta; e os 35 minutos que dura a composição musical transportam o ouvinte, que também tenha sido leitor de Nietzsche, para atmosferas vibrantes, pungentes, eufóricas, sinistras, e sentem o espírito do poeta/filósofo a pairar nas ondas sonoras que lhe arrepiarão, sem sombras para dúvida, toda a sensibilidade.
Deste modo, não consegui, em todos estes anos, destronar o Zaratustra de Nietzsche, não consegui negá-lo, como sei que fizeram certos leitores incautos, que não souberam ler a metáfora, por detrás da apóstrofe violenta, que, enviesando as palavras daqueles textos magníficos, captaram a apologia do mal e da violência e tiveram medo de se precipitarem, eles próprios, no abismo. Hoje, como quando tinha 19 anos, “Assim Falava Zaratustra”, é a obra de referência da minha vida de leitora.
Mas, como disse, não me detive aí, continuei sempre à procura, e encontrei outra obra magnífica que saboreei palavra a palavra, receosa de vê-la acabar – o livro é bastante pequeno – e a que regressei, quase de imediato, porque necessitava de sorver mais um pouco do indizível encanto de um narrador extraordinário. Falo de “O Leitor”, de Bernard Schlinck, falo de uma história narrada em primeira pessoa, com tal cunho de veracidade, com uma dose tão elevada de honestidade, simultaneamente intelectual e existencial, que a mente, o intelecto, o espírito, nele se prendem de modo absoluto. Curiosamente, vi o filme homónimo antes de ler o livro e percebi que o realizador, Stephen Daldry, soube captar o âmago de uma história pungente e patenteá-la, ali, com absoluta autenticidade.
Confirmei, depois de ler “O Leitor”, de Bernard Scllinck, que há escritores honestos, cujas palavras não podem ser substituídas por outras, cujo deslizar da narrativa, até ao fim, só pode ser aquele e nenhum outro. Soube ainda que o que procuro, hoje, nas leituras que faço, é esse poder da palavra, essa arte ou sabedoria de acertar, sem hesitações de espécie alguma, no termo exato para exprimir, exatamente, a circunstância a narrar, e fazer com que tenhamos que a interiorizar e sofrer na sua estrita objetividade.
Desta mesma estirpe é o sul-africano John Maxweel Coetzee, cuja obra li, integralmente, depois de o autor ter sido laureado com o prémio Nobel, em 2003. Curiosamente, não era um autor conhecido, nem sei se estava traduzido em português, antes do Nobel, o prémio teve o condão de «obrigar» os tradutores a porem-se em ação e os editores a trazê-lo ao mercado; nem sequer era amado na África do Sul, que o depreciou antes, para se desfazer em vénias, depois da escolha feita pela Academia de Estocolmo. E, quem ler Maxwell Coetzee, poderá, sem dúvida, entender por que não era amado na sua terra esse extraordinário escritor.
Citarei, de todos os livros de Coetzee, “Desgraça”, pela forma magistral com que o autor consegue descrever a existência solitária de uma mulher, idosa e doente, escrevendo, exatamente, como se fosse mulher e conseguisse penetrar o universo feminino em toda a sua dimensão. “Desgraça”, de Maxwell Coetzee, fez com que eu percebesse que o verdadeiro escritor, aquele que sonda a raiz do tempo e da vida e a traz, em livro, à contemplação do mundo, encerra em si muitos narradores, que vão ganhando voz, e podem ser homens, mulheres, crianças, gatos ou pássaros, e sê-lo, autenticamente.
E então, porque também eu sou escritora, porque também eu encerro narradores secretos, ocultos até de mim própria, tenho andado a ler dois livros que escrevi; e a minha acutilância de leitora conseguiu separar-se da condição de autora, e transformei-os, também, em livros de referência, que insiro, sem pretensiosismos ou pudor, na minha lista de referências literárias. Falo de “O Pulo do Lobo”, uma saga existencial, onde as várias personagens se cruzam e descruzam nos altos e baixos dos seus percursos humanos e, agora que ando a lê-lo, descubro a autenticidade paradigmática de um certo narrador que há em mim e se desocultou, para se transcender, numa obra que bem merecia ser mais amplamente conhecida. Antes disso, li “O Besta Célere”, obra cujo narrador é de outra região do meu íntimo, obra que desafia muitas convenções linguísticas, porque assim o quis o intérprete que me possuiu, enquanto narrava a história desse homem hiperbólico, e contudo, demasiado humano.
São, sem dúvida, estes dois romances da minha autoria, obras que me saíram da mente e dos dedos, mas que hoje destaco de mim, pois, no ato de publicar, conferi-lhes autonomia.
E desengane-se todo aquele que pensa (ou pensou), ao ler-me, que é um ato de imodéstia censurável, dar aos meus próprios livros semelhante conotação. Reparem, pensem: se eu, leitora experiente e conhecedora, fui capaz de publicar obras que eu própria produzi, não seria porque tinha a plena consciência do seu valor e que, por isso, era necessário partilhá-las? Se agora as negasse, ou se me encerrasse em mutismo, relativamente a elas e ao seu valor, não seria, essa, uma atitude hipócrita e dissimulada que não se ajusta, nem um pouco, ao meu modo de ser?
Por isso, junto-me a Friedrich Nietzsche e a “Assim Falava Zaratustra”, acompanho Bernard Schlinck e “O Leitor”, irmano-me com John Maxwell Coetzee e “Desgraça” e completo a lista de hoje com “O Pulo do Lobo” e “O Besta Célere”!
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