terça-feira, 2 de setembro de 2014

A NARRAÇÃO DE UM PARTO (E AS VÍRGULAS)


REGINA SARDOEIRA
DR
Há dias publiquei, online, um capítulo do meu romance, O BESTA CÉLERE, e recebi a seguinte crítica:

“Confesso que não li tudo: tenho imensa dificuldade em ler, ver, ouvir, sentir e gostar de textos sem pontuação. Não critico a opção e o estilo por este género de escrita: o escritor é soberano na forma que escolhe. Bem entendido, não consigo libertar-me para esta leitura. “

Sorri intimamente, não por via de qualquer sarcasmo, mas percebendo, inteiramente, a dificuldade do leitor, bruscamente agredido perante um texto, ainda longo, e sem uma única vírgula!

Dado que esse específico leitor não concluiu a leitura do referido capítulo, não chegou a perceber a caraterística fundamental do narrador singular que ali pontifica.

Trata-se da descrição, em primeira pessoa, do ato de nascer. Quem assim relata impressões e sentimentos é um feto, primeiro, mergulhado no aconchego do líquido amniótico, a seguir, acometido pelas sacudidelas terríveis da urgência de sair, exausto, nos recuos para a concha do útero e, de novo, arremetendo contra a pequena abertura, que lhe daria a luz, sem que ele o soubesse ainda e, por fim, a brutalidade do êxodo, a primeira lufada de ar, o golpe iniciático de luz, o grito da abertura dos pulmões!

Quem «escreve» todo esse capítulo é um pré-nascituro e, a seguir, um recém-nascido, estremunhado, apavorado, agredido por mãos rudes e vestes ásperas e imediatamente afastado de quem foi, afinal, (soube-o, sem, de facto, o saber) a condição da sua existência.

Ora, a narrativa não tem, nem podia ter, aquele sinal de pontuação, que tanta falta fez ao leitor desmotivado – a vírgula! E como poderia tê-la?

O desespero do nascituro emergente, a querer, compulsivamente, fazer o registo possível da memória do seu parto, eliminou a vírgula, a pausa, os cambiantes linguísticos e tudo o mais que costuma estar ligado a esse sinal de pontuação, e atirou-se, aos tropeções, numa escalada veloz de palavras, encadeadas, em apoteose desesperada ante o temor da morte, ele, que, afinal, nascia!

Aquele feto pôde descrever a sua própria saída do útero, pôde evocar e dar testemunho da entrada turbulenta do corpo no mundo e teve que o fazer desse modo brutal, porque brutais foram também os momentos vividos.

Digam-me: que sabe um feto de pontuação, de vírgulas? Que sabe um feto do que quer que seja, a não ser que travou a mais dolorosa batalha da sua existência naquelas horas de luta com a porta para o mundo?

Fiz um feto escrever um capítulo, é verdade, fiz um nascituro narrar a sua epifania de homem emergente. E nenhuma vírgula lhe dei porque ele, na sua vertigem, simultaneamente sensitiva, intelectual e metafísica, não permitiu o seu aparecimento.

Refletindo acerca do parto de cada um de nós, eu questiono: quem, ó leitores, mas quem consegue lembrar, evocar e narrar a prodigiosa saga dessas horas, afinal vividas, afinal sentidas, afinal presas num qualquer escaninho da memória?

E se pudessem saber, como as narrariam?

Paira um profundo segredo sobre esse momento que todos vivemos, um segredo, de nós, para nós mesmos, um segredo que nos parece natural mas que, efetivamente, esconde o primeiro e mais profundo trauma da nossa vida. 

Quem já protagonizou um nascimento – falo das mães – fica de tal modo absorvida com as contrações do seu corpo, a abrir-se, em espasmos dolorosos, para dar saída ao filho, que não tem tempo de pensar na dor, na estranheza, e em toda a avalanche de sensações que vão percorrendo o corpo e a mente do seu filho, também ele sofrendo, também ele lutando, ao mesmo tempo que a sua geradora. A seguir dá-se o esquecimento, o cérebro incipiente não é capaz de lidar com semelhantes emoções; e eis que o nascituro as bloqueia, eis que o pequeno ser se aquieta. E uma vez limpo dos detritos com que emerge da batalha, aquecido e aconchegado, ninguém diria que, se a mãe o deu à luz, foi porque também ele se deu, a si mesmo, à luz! Ninguém diria que aquele pequenino corpo, rosado e perfeito, jogou todas as suas energias, arremetendo contra uma porta estreita que precisou de abrir, à cabeçada! Ninguém diria que ele, o nascituro, o sabe nas profundezas de si e que essa marca primordial fará parte, para sempre, do seu modo de ser pessoa.

Creio firmemente que qualquer um de nós pode, se aplicar o método correto, recordar o momento em que nasceu, porque esse momento ocorreu connosco, de facto, esse momento foi o ponto mais alto da vida de qualquer vivente: mas, a mente tem recursos protetores que são, de imediato, desencadeados, cegando a clarividência dessa escalada agónica e espalhando no rosto do recém-nascido um halo de beatitude, pelo qual se furta ao desespero.

O meu herói, de seu nome Besta Célere, hiperbólico e, de certo modo, super-humano, se bem que homem vulgar, como qualquer um de nós, apanhou, ao milésimo de segundo, a corrente veloz do seu existir…mas, como só realizou tal proeza, quando a consciência de si lhe anunciou a perda inexorável de muitos anos, até então, necessitou de tornar-se um narrador, de tal modo prolixo e rápido, que não sobrou nenhum tempo para…as vírgulas!

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