sexta-feira, 26 de setembro de 2014

“NO TE ENTIENDO”


Ricardo chegara a casa abatido, triste e conformado. Raquel, antevendo o pior, atirou, aflita:
- Então, homem? Que te disse o doutor?
- Que o caso está feio…
- Mas feio… como?
- Feio! Mau! A cara dele não indicava nada de bom!
- Pois… Feio, mau… o quê? Que doença é que tens tu?
- Qualquer coisa no intestino… Não sei bem explicar…
- Então, tu estás mal e não sabes de quê? Tu não lhe perguntaste? E ele, o doutor, não disse do que padecias?!
- Lá dizer, disse, mas eu não percebi bem… Só sei que é qualquer “coisa” grave… Olha… receitou-me isto. Amanhã tenho de aviar a receita na farmácia.

Não, esta não é uma conversa entre dois velhinhos analfabetos e atadinhos que mal sabem ler! Esta é uma
GABRIEL VILAS BOAS
DR
conversa a que assisti, algumas vezes, entre duas pessoas, da classe média ou média alta, muitas vezes licenciados, depois da ida ao médico duma delas. 

E a razão de tamanha ignorância não é só o estúpido medo em confrontar-se com uma realidade cruel, mas a evidente dificuldade de muitos de nós compreender o que os médicos nos dizem e até a sua prescrição. 

É certo que muito vocabulário médico é técnico, mas é sabida a relutância que muitos senhores doutores têm em explicar, dum modo simples e eficaz, aquilo que o paciente padece e o tipo de tratamento que lhe será ministrado. Do lado do paciente, sobra a vergonha de perguntar, de pedir para “trocar por miúdos”, não querendo dar parte de fraco. 

Nunca entendi esta maneira de pensar e agir. Sempre que vou ao médico, quero saber, claramente, as maleitas de que sofro, a sua perigosidade, o tratamento indicado, o seu grau de eficácia… enfim, tudo o que for possível. Quando um amigo sofre algum inesperado revés de saúde, aplico-lhe a mesma “receita”. Todavia a maioria das pessoas não age assim. Por isso, não me espantou mesmo nada uma notícia que li há uma semana, segundo a qual 61% dos portugueses não entendia aquilo que os médicos prescreviam.

Também não me surpreende que o mesmo se passe nas escolas, nas repartições públicas, nos tribunais, em alguns programas de televisão. Sinto com desgosto que a maioria da população portuguesa sofre de iliteracia. Uns em maior grau, outros em menor! 

E a culpa não é apenas dos iletrados que se deixaram arrastar para os territórios escuros da ignorância. Muitas vezes, sinto que médicos, professores, advogados, juízes, jornalistas, políticos não se preocupam em comunicar, mas em explanar o seu saber com o maior e requintado virtuosismo técnico e linguístico, como se estivessem em frente dum espelho e se autocontemplassem. Se as pessoas que estão na sua frente perceberam ou deixaram de perceber, é-lhes quase indiferente. No entanto, se a comunicação não passa, o seu ato foi duma profunda irrelevância e todo aquele palavreado aproximou-se mais da jactância do que da importância. 

Comunicar bem é uma arte. Não significa descer o nível da conversa, usar vocabulário infantil ou grosseiro ou estar sempre a usar metáforas rústicas para explicar o mais simples pormenor. Comunicar bem é usar um vocabulário simples e eficaz, adequado às circunstâncias e ao nível social e cultural do nosso interlocutor, sem nunca desrespeitar a sua inteligência.

Os meus melhores professores eram homens e mulheres extremamente cultos, com a capacidade de palestrar durante horas com a elegância literária dum poeta, mas que sempre optaram por me ensinar com a sapiência dum professor que poucas vezes me fez sentir um aluno. 

O médico do Ricardo não era cubano, galego ou ucraniano. O médico do Ricardo era português e tinha uma grande capacidade de diagnose e prescrevia com enorme acerto, mas raramente levanta a cabeça para olhar, no fundo dos olhos, os seus pacientes e reparar nos seus gestos contraídos que surdamente berravam

“Não te entendo!”

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