J. EMANUEL QUEIRÓS DR |
Depois de 2008, a institucionalização da crise em Portugal teve seu tempo de preparação, dispos de seus cavaleiros, seus pajens e mordomos. Genericamente, aprumam-se disciplinadamente como ‘soldadinhos de chumbo’ retransmitindo as vozes da ribalta mais iluminadas; alinham-se pelas teses difundidas pelos correligionários mais graduados e comportam-se como serventuários das correntes em exercício. Em toda a sua extensão, formam exércitos informais só distintos pelas cores dos uniformes, movidos por dispensáveis crenças indómitas, sempre prontos a acolitar nos santos ofícios e disponíveis a seguir acriticamente cortejos e procissões ressonantes com o seguidismo da fé e do sectarismo.
Presentemente, na Europa há cerca de 15 milhões de pessoas sem segurança alimentar, enquanto em Portugal a pobreza pode já estar a afectar 20% dos nossos concidadãos, algo equivalente a 2 milhões de pessoas.
Apesar da dimensão populacional moderada, o contributo português para a pobreza na Europa é enorme e ela não surge de geração espontânea nem é retransmitida geneticamente. Estudos económicos recentes feitos por académicos portugueses insuspeitos concluíram que, desde 2007/2008, foram tirados «3,6 mil milhões aos salários e deram 2,6 mil milhões ao capital».
O propósito proteccionista concedido a alguns predestinados donos do regime fica claro, enquanto, em nome do país e do Estado, os mais desprotegidos passam a constituir um impeçilho que, pelo peso social e o contraste negativo, importava descartar de algum modo.
Durante a consolidação do cenário do cenário da crise, engendrado com o propósito de inviabilizar o país para a maioria das pessoas, diferentes vozes têm tido significativa amplificação, percebendo-se em cada uma sua orientação e seu alinhamento de princípio.
Era suposto que aquele povão que ‘comia bifes todos os dias’, e sem possibilidades para tanto, teria de reduzir à ração e à qualidade alimentar, e, como detentor dos maus hábitos de ‘lavar os dentes com a torneira aberta’, teria de passar a poupar na água, no detergente e na escova. Teríamos, assim, “que empobrecer muito, mas sobretudo vamos ter de reaprender a viver mais pobres", dizia em Novembro de 2012 a presidente do «Banco Alimentar Contra a Fome», sem saber que os portugueses são o povo da Europa que mais água poupa.
Ora, pois!... Se até os ‘sem-abrigo aguentam’ passar por muito maiores níveis de carência, por que é que este povo ordinário e reles – que não sai do ciclo do remedeio e da pobreza por serem ‘profissionais da pobreza’ e porque ‘fazem da mendicidade um modo de vida’ –, não havia de aguentar?...
É interessante percebermos como dois indivíduos colocados em papéis sociais relevantes e em posições diametralmente opostas podem ter, em discursos diferenciados, a mesma orientação coincidente com a cartilha de um Governo dissociado das causas sociais.
Por um lado, a senhora Isabel Jonet, enquanto presidente do «Banco Alimentar contra a Fome», deixava a marca tendencialmente infantilizadora, inadequada para o seu estatuto cívico, usando uma discorrência aviltante, com referenciação à fome e à pobreza de que se alimenta e lhe confere notoriedade até chegar a presidente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares. Por outro, Fernando Ulrich, na qualidade de presidente executivo do banco BPI, defendia “mais austeridade para o país” enquanto o seu banco beneficiava de um empréstimo financeiro do Estado no montante de 1,3 Mil Milhões de euros.
A um, a caridade e a fome dão-lhe o poleiro doirado, a notoriedade, a afectação de pronúncia, para o desaforo produzido. A outro, afortunado pelos poderes conquistados com a fortuna alheia e pela garantida protecção governamental, produz o dislate com o maior desplante de um ego espaçoso alicerçado em couçados alforges. Ambos, em função serventuária do sistema e do regime e percebe-se porquê.
Com o sofisma propalado aos quatro ventos nos órgãos de comunicação social, cada um pelo seu lado, devem divertir-se 'à grande!' todas as vezes que são matéria de notícia, por quanta insensatez beata e programática debitam num claro papelão de serviço ao poder. Não ao povo, em geral, de que se servem nas suas actividades, muito menos aos manifestamente carenciados que nem chegam a incomodar.
Já no decurso do corrente mês, o antigo presidente do CDS-PP Adriano Moreira, criticando a Europa pelo neo-riquismo que presentemente divide a "Europa dos pobres" e "Europa dos ricos", e denunciando os incitamentos à separação dos portugueses entre ricos e pobres, apontou o problema essencial que importa resolver em Portugal: “é pão na mesa e trabalho”.
Bem distintas são as análises e os diagnósticos efectuados com seriedade à causa em questão, fazendo crer que a reflexão e a abordagem das problemas que afectam a sociedade e infernizam a vida das pessoas não está ao alcance de qualquer um, nem as opiniões debitadas para consumo público valem todas por igual.
Neste contexto da crise em Portugal, não há diferença alguma entre ouvir Isabel Jonet ou Fernando Ulrich. Com estatutos diferenciados mas protagonizando papéis semelhantes, os dois personagens configuram o exemplo acabado do sarcasmo na história da ‘pimenta e do refresco’. Falam de barriga cheia e na abastança da fome, ambos estendem seu papelão na rua, reincidindo em enjoativas e bafientas refeições doutrinárias.
Para qualquer um dos casos, a fome que se alimenta na crise é de extrema pobreza de espírito, passível de ser erradicada com um pouco de sensibilidade social.
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