REGINA SARDOEIRA DR |
Assistir a uma autêntica e desenfreada produção/publicação de livros e, por consequência, perceber que aqueles que os escrevem se intitulam, imediatamente, de «escritores», causa-me alguma perplexidade.
Por um lado, parece um ótimo sinal de desenvolvimento que tão grande número de pessoas decida escrever um livro, decerto para cumprir aquele antigo preceito que diz: «Para seres homem, deves plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro».
E então, pessoas que realizaram já as duas primeiras tarefas, acreditam que não estarão completas enquanto não se abalançarem a empreender a terceira.
Esses potenciais, e logo autodesignados escritores, podem realizar esta prerrogativa de tornarem-se homens, em tenra idade, pensando que, ao escreverem logo um livro, com 17 anos, por exemplo, realizam a tarefa mais fácil das três, principalmente se viverem numa cidade grande, onde não haverá muitas oportunidades de plantar uma árvore e pensando que ter um filho tão cedo é bastante inconveniente.
Não duvidando, em absoluto, da possibilidade de um jovem de 17 anos poder escrever um bom livro, a regra geral prova exatamente o contrário: com essa idade, o jovem não teve tempo para adquirir competências linguísticas, não pôde realizar, ainda, as necessárias leituras que lhe servirão de escola, não tem, em suma, suficiente experiência humana e existencial para escrever, num livro, algo que valha a pena ler. E esta última observação é muito importante: quem escreve deve ter em mente o leitor, não para agradar-lhe e conquistar adeptos (e já voltarei a este assunto), mas de modo a que as suas palavras enriqueçam quem lê.
Mas pode ainda acontecer que alguém, com uma certa idade, que já plantou árvores e fez um ou vários filhos, decida levar o preceito à letra e começar a escrever o tal livro que falta na equação do êxito pessoal. A maior parte das vezes, esse primeiro ato de escrita, em idade madura, é mais dramático do que o outro, pois um jovem, mesmo que escreva um primeiro livro medíocre, pode sempre optar por dois caminhos: ou desiste de escrever, percebendo que não é efetivamente esse o seu talento ou colhe lições das críticas que poderá vir a ter, interioriza-as, treina e pode ser que venha a tornar-se, de facto, um escritor; quanto ao escritor da terceira idade, já enquistado na sua capacidade cerebral, decerto convencido de que tem muito para contar e partilhar e que até sabe escrever, se o livro que lhe saiu dos dedos for mau, vai experimentar uma terrível desilusão. Em primeiro lugar, poucos amigos ousarão dizer-lhe a verdade acerca do valor da sua obra e a crítica nem sequer lhe deitará um olhar. Em segundo lugar, pode ser que ele tenha suficiente capacidade de autocrítica e compreenda que a sua obra não é tão digna quanto o foi plantar uma árvore ou fazer um filho. E, como já não lhe resta – pela cronologia natural da vida – muito tempo para melhorar e tornar-se, verdadeiramente, um escritor, advir-lhe-á, desse gesto, uma enorme frustração.
O que importa, porém, acentuar na temática que abordo hoje é que, do mesmo modo que nem todos têm talento para a música, ou para a escultura ou para o tricô, a culinária ou a carpintaria, também a habilidade para a escrita é, antes, de mais, um dom. E o dom ou o talento, como quiserem, ou se tem ou não se tem.
Dir-me-ão que pode aprender-se, dir-me-ão que, ter umas aulas de escrita criativa ou fazer um curso do mesmo teor, poderá ser a chave para a formação do escritor. Mas eu digo que não, se o talento não estiver lá, como idiossincrasia pessoal, que os cursos e as aulas poderão potenciar.
Escrever um livro, editá-la e torná-lo público (assim em conjunto) é uma tremenda responsabilidade pessoal, que não pode ser levada com ligeireza, pois destina-se a circular de mão em mão e passa a pertencer ao público e à posteridade. O livro, aberto e lido, vai afetar o leitor de muitas formas, vai fazer parte da vida de quem o leu e pode exercer influências várias; além disso, estará lá, para o melhor e para o pior, no acervo literário do país (ou do mundo).
Eu gosto de livros e leio diariamente. Mas, com o tempo, fui-me tornando de tal modo seletiva e especializada que, mal começo a ler um autor novo, apanho imediatamente a arte, ou a falta dela, o talento, ou a sua inexistência, a especificidade narrativa ou a vulgaridade, a autenticidade do estilo ou a mera cópia do já visto. Muitas vezes, a leitura de duas ou três páginas é suficiente para me lançar, definitivamente, no ato empolgante de ler, ou para fechar o livro e passar adiante, para não voltar nunca mais. Depois, fico verdadeiramente espantada quando percebo que todos esses que rejeitei, por não terem essência, ou por serem pretensiosos, ou por terem erros e por aí adiante, estão nos píncaros da crítica, são os grandes autores, nacionais ou internacionais, ou tornam-se best-sellers!
Darei dois exemplos.
Não consegui ler até ao fim a obra “Livro” de José Luís Peixoto, principalmente porque, a certa altura, dei de caras com um artifício – escrever, por exemplo, a letra “C”, isolada no início de um capítulo e continuar a palavra na linha de baixo, escrevendo, por exemplo também, “aíram”. Julguei tratar-se de uma gralha tipográfica e prossegui a leitura; mas fui encontrando o mesmo esquema ao longo do livro e, desgostosa, por me parecer um truque destituído de sentido…já não li mais! O José Luís Peixoto que me desculpe, provavelmente não lhe compreendi os intuitos! O certo é que a partir de uma certa altura me senti ridícula, naquele ato de ler um livro, com semelhantes arabescos fátuos e não continuei a ler.
Em contrapartida, quando li “ A Boneca de Kokoschka” de Afonso Cruz experimentei uma espécie de deslumbramento, li a obra com uma sensação extraordinária de prazer, com a minha sensibilidade estética elevada ao máximo, admirando a inteligência na construção da história e o encanto das personagens, para além do usufruto da perfeição linguística e do estilo francamente peculiar e muito atrativo.
Decerto voltarei a ler José Luís Peixoto e não tenho dúvidas que lerei outra obra de Afonso Cruz: pode ser que compreenda o primeiro e reitere o valor do segundo.
Relativamente às intenções de quem escreve, assim, de um momento para o outro, porque de repente lhe apeteceu, considero absurda a preocupação desses «escritores» em agradar aos leitores. “Vamos escrever o que as pessoas querem ler, vamos escrever sobre aquilo que está a dar no momento, vamos ser leves ou engraçados, vamos usar palavras fáceis para que todos possam perceber…” Estas e outras motivações dos escritores emergentes aterram-me!
Sei bem que hoje em dia tudo é mercado e que, se um autor quer publicar, tem que pagar a edição e que, por essa razão, é-lhe essencial vender. Mas como está errada esta transformação do escritor em técnico de marketing, em comerciante, em angariador de clientela, em auto-promotor de imagem, numa correria de televisão para televisão, de cidade em cidade, de evento em evento, de entrevista em entrevista!
O escritor é o homem ou a mulher dos bastidores, que cria no silêncio e no segredo das suas paredes e que, mais tarde, quando sente que a obra acabada precisa da participação dos destinatários, cria as condições para que ela cumpra a sua função.
As editoras, essas são os veículos comerciais e elas, e apenas elas, devem ter os técnicos capazes de apreciar a obra, de entrar em contacto com o escritor, propondo eventuais alterações e correções, acertar detalhes com ele, promover a obra e distribuí-la: afinal, se reparamos bem, o autor dá a matéria-prima, sem a qual não se fará um livro e, por fim, só recebe 10% de direitos autorais! Portanto, se a obra valer efetivamente e a editora fizer o seu trabalho, o livro chegará ao mercado, sem a participação do escritor que não tem obrigação de entender os mecanismos comerciais, porque não é, em definitivo, um comerciante. E nem tenho a certeza absoluta se o escritor deverá andar de palco em palco, de feira em feira, de cidade em cidade a mostrar-se e à sua obra…não é ele que, de facto, importa, mas sim aquilo que escreveu e deixa de pertencer-lhe logo que sai para o público. Mostrar-se, exibir-se, enquanto imagem, dignificará o autor? Não creio.
Por mim, prefiro escrever os meus livros, editá-los, fazer um ou dois lançamentos e, imediatamente, partir para outro: se as obras tiverem valor, ele manifestar-se-á, mais tarde ou mais cedo, e não tenho qualquer problema em assumir-me, desde já, como escritora póstuma!
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