REGINA SARDOEIRA DR |
Escrever sobre política parece ser uma tarefa urgente e a que nenhum escritor responsável deve furtar-se, sob pena de estar a subverter a sua autêntica função. De facto, o escritor é lido, e mais ou menos seguido por aquele que o lê; ou então, a sua palavra é posta em causa e questionada, o que tem, decerto, mais importância do que o simples e passivo ato de seguir.
Ora, escrever sobre política é, de facto, escrever sobre a função humana mais ampla, visto que nós, cidadãos de uma democracia, somos, de facto (ou deveríamos sê-lo ou começar a sê-lo) os obreiros da nossa própria condição e, se queixas temos sobre o modo como decorre a organização do nosso mundo, é de nós mesmos que deveríamos, antes de mais, queixar-nos.
Uma primeira questão se impõe: que faço eu pela regulação da sociedade em que vivo, enquanto cidadão democrático, a não ser dirigir-me à mesa de voto, em datas previamente estabelecidas, e inserir na ranhura de uma caixa, a minha escolha, visando um símbolo identificador?
Se acaso alguém responder, de si para si mesmo, que faz mais do que isso, que intervém ativamente, que vigia, controla e exige o cumprimento dos programas daqueles em que delegou a sua vontade, eu demonstro-lhe, desde já, a minha admiração e louvo-lhe o procedimento. Porque, afinal, quando vamos a votos e desenhamos a cruz ao lado de uma imagem, o que estamos, de facto, a fazer é a escolher programas concretos e pessoas específicas para nos substituírem, enquanto representantes, nas diversas funções para as quais se candidataram. Por acaso alguém conhece, mesmo, o que se propõem fazer os indivíduos que aparecem no boletim de voto, à sombra de um símbolo? Leram o manifesto eleitoral, onde eles explicam o que pretendem executar em vosso nome, e conhecem-lhes a cara e a resenha biográfica que os carateriza, aproximadamente? Se responderem que sim, que sabem perfeitamente os programas desses vossos delegados, que os viram, ao menos representados numa fotografia, e se dispuseram a estudar-lhes o perfil, eu não consigo entender por que razão os deixam enganar-vos, permitindo que eles disputem as cadeiras, onde lhes dais o direito de se sentarem, ano após ano, década após década. Não consigo compreender como autorizam que eles continuem lá, disfrutando de benesses, à vossa custa, pondo e dispondo das vossas vidas com o aval que lhes deu o vosso voto.
A verdade é que o cidadão continua a votar, resignadamente. A verdade é que o cidadão queixa-se, sente-se defraudado, prejudicado, humilhado: mas continua a delegar naqueles que considera incompetentes (porque os vê agir e os ouve falar) as decisões fundamentais da sua vida. A verdade é que o cidadão não acredita na democracia, com a qual convive há quatro dezenas de anos (em Portugal), não acredita no valor do seu voto, não acredita que a substituição de uns, pelos outros venha transformar, positivamente, a nossa comum situação: mas prossegue, de cabeça baixa, a aceitar o séquito tenebroso dos planos retorcidos e desonestos com que lhes governam os destinos, crendo que eles podem tudo e nós temos apenas que submeter-nos e sofrer!
Todos os dias observo estas e outras realidades do nosso mundo democrático, este mundo em que eu e vós deveríamos ser soberanos e não somos, em que eu e vós deveríamos ter os nossos direitos básicos garantidos e não temos, em que eu e vós deveríamos poder fruir a existência com otimismo, e de acordo com aquilo a que chamamos realização pessoal, e não fruímos, todos os dias observo estes e outros sinais de que não passamos de escravos, de marionetas, de degraus sobre os quais saltam aqueles que elegemos para nos servirem: e não consigo entender o que andamos nós a fazer nesta sociedade absurda. Não consigo entender por onde respiram os homens esclarecidos deste século XXI, tão recheado de informação, tão veloz na capacidade de difusão de ideias, tão eficaz na propalação de testemunhos, tão profícuo em recursos tecnológicos, capazes de agregarem os homens à escala global, não sei por que se calaram; ou se acaso essa classe, quais dinossauros intelectuais, foi extinta, deixando no seu lugar indivíduos passivos e acomodados, multidões de cérebros unidos em sinapses de conformismo alienante.
Enquanto escritora, devo denunciar o vírus do nosso tempo para que conste. E o vírus não é a corrupção instalada nos órgãos do poder, não é a crise financeira que nos empurrou para despenhadeiros de carência, não é o discurso batido e esvaziado daqueles a que chamamos políticos e que aceitamos como nossos líderes, não é o negócio fraudulento dos grupos económicos, sejam eles quais forem, não é a incompetência calamitosa daqueles que gerem o nosso mundo…o vírus é a apatia generalizada dos cidadãos, encolhidos nas suas conchas e murmurando críticas vãs pelas praças públicas dos nossos dias, o vírus é a ignorância que vamos ocultando com capas e mais capas de conhecimentos inúteis, o vírus é o individualismo mentecapto com que vamos tratando da nossa vidazinha, pois ela não dura sempre e só temos direito a esta, o vírus é a decadência moral e ética deste tempo que só pode caminhar para uma espécie de apocalipse.
Humanos, nós? Eu vejo hordas de indivíduos estremunhados, ou francamente adormecidos, rebanhos de reses a caminhar debaixo do cajado e da voz de pastores envilecidos (e a sentirem-se livres), multidões de seres aberrantes, absurdos e indignos da própria humanidade que reclamam.
O que diria de nós um habitante da selva – o nosso quase igual orangotango, por exemplo, ou um exército de formigas, em ordeira e racional coesão – se acaso pudesse manifestar, com a nossa voz (já que a deles não conseguimos descodificar) o que observa e interpreta do comportamento dos que afirmam ser-lhes infinitamente superiores?
Certamente rir-se-iam muito da nossa condição ridícula e mísera, todos esses que, apesar de inferiores (dizemos nós), têm a sua vida organizada e proficiente, sabem exatamente o lugar que ocupam, têm onde dormir e o que comer (não fossemos nós, humanos, a destruir também, de forma abusiva, a sua originária condição de vida) , sabem quem é o chefe e porquê, sabem de quem precisam de defender-se e porquê, sabem o que é preciso saber para cumprir um certo paradigma que lhes diz intrinsecamente respeito.
Irracionais, eles? Se no mundo existe um grão de sensatez, um pingo de organização, uma réstia de sabedoria, elas estão, inteiramente, do lado desses, que nos apressamos a reprimir, a domesticar, a meter em jaulas, a escravizar, tornando-os nossos semelhantes pela incapacidade que, a partir dessa altura têm de se autorregularem.
Não existe qualquer conclusão à vista, para este texto em que me propus e dispus a falar de política. Decerto quem me ler pensará que discutir política é outra coisa, muito mais erudita, que discutir política é falar da guerra e dos seus senhores e também das suas vítimas, que abordar o tema da política é mostrar que estamos a par dos grandes problemas e das grandes soluções, impressos em manuais ou debatidos por especialistas à hora do jantar. Decerto quem me ler pensará que sou ingénua, ou fora do tempo, e que agora urge acompanhar a corrente ou brincar às lutas de freguesia, que trazer à cena a questão da condição humana e chamar-lhe o seu verdadeiro nome é um insulto a tanta inteligência, desdobrada em tantos manifestos por tantos e tão sapientes observadores.
Mas eu insisto: enquanto o homem, individual e coletivamente, não retomar a sua real dignidade e estraçalhar isto que construiu e o fez tornar-se um insulto para si próprio, não poderei escrever mais nada sobre política, já que a resposta, que provavelmente terei, não colherá qualquer resultado, enquanto não tiverem caído as vendas e as mordaças que todos em conjunto fomos construindo.