Alina Sousa Vaz DR |
Faz frio lá fora… olho em frente pela vidraça e os montes no meu horizonte ficam envolvidos de soturnidade nostálgica. As memórias invadem-me como se tomassem conta de mim e dão lugar a uma narrativa de acontecimentos dos meus tempos de criança. Na verdade, de uma fase ainda presente não tivesse eu laços estreitos com gente que sempre tratou a terra por tu, hoje denominados “pequenos agricultores” do Douro.
Esta gente merece tudo! Esta gente de quem vos falo foram personagens ativas na construção da excecional paisagem duriense que nos delicia o olhar mesmo nos tempos de invernia. Cumpria-lhes o esforço diário dos nove meses de inverno e dos três meses de inferno refletido nas suas peles queimadas pelo frio e pelo sol.
Lembro que acabada a roda-viva da vindima e a lida dos lagares, o tempo que se seguia era passado no tratamento do vinho para consumo e na destilação do bagaço. A azáfama das vindimas fora tanta que o descanso era merecido, porém nos dias soalheiros outonais, homens e mulheres, realizavam pequenas tarefas e o repouso era desfrutado na lavra dos olivais e no semeio da fava.
Recordo que, ainda, antes do Natal, o frio gélido de inverno já acompanhava a escava, uma das tarefas principais que consistia em abrir covas em redor das cepas, ou compridas valeiras ao correr dos geios, para cortar as raízes e também reter as águas, evitando deste modo o desgaste contínuo da erosão. Depois dos Santos, a azeitona era varejada para cima de toldes estendidos no chão que, imediatamente seguia para a azenha onde o odor a azeite entranhado me provocava sempre pequenas náuseas.
Entre final de Novembro e Março as vinhas eram podadas, trabalho moroso e de alguma sabedoria, que obrigava os homens, sempre bem agasalhados, a ficarem curvados de tesoura na mão interrompendo o silêncio dos grandes espaços com o som tique, tique, tique cada vez que aquela arrebatava uma cepa. Os homens mais robustos e jovens trepavam às árvores manuseando a foice de longo cabo para arrebanharem os pequenos troncos. Os trabalhadores, ofegantes do frio cortante, deixavam o chão dos terrenos inclinados cobertos de lenha fina que depois era apanhada e alinhada em pequenos molhos pelas mulheres que os transportavam à cabeça para as suas casas. E lá iam elas de corpo por vezes mal formado pelo intenso trabalho para as suas tarefas domésticas.
Saudosamente, reavivo a cozinha rural transmontana. Esta divisão era essencial, pois era ali que a família passava a maior parte do tempo nos dias de grandes temporais.
Em volta da lareira, por cima das grandes brasas ordenavam-se os potes pretos e as panelas, com água para o banho, o caldo de legumes, petiscos fumegantes, água para o chá, etc.
De repente…“Entre, quem é?” era o que se ouvia quando alguém batia à porta. De imediato era convidado a sentar e ao lado da lareira lá estava um grande banco, o escano, um banco de madeira de costas altas, geralmente com lotação para quatro ou mais pessoas. A hospitalidade trasmontana é sem dúvida ímpar! A mesa enchia-se de deliciosas iguarias…presuntos, salpicões, chouriças de fumeiro, as alheiras, a batata assada com casca e bacalhau assado, o cabrito assado…e o vinho faziam as delícias de quem por ali passava. Uma riqueza gastronómica!
Relembro de forma aconchegante aquele momento em que se alimentava o fogo com mais uma acha para que este não se extinguisse e travasse o frio vindo das frinchas das telhas rústicas e nos oleasse os pensamentos daquela água que descia os montes e fragas engrossando os pequenos caudais e ferozmente enchendo as estradas de entulho das sapadas, por vezes perigosas.
As memórias de Inverno trazem um vento que enregela os ossos!
Mas, as minhas memórias de Inverno vão estar sempre ligadas à cultura da vinha que exige, ainda hoje, a estes pequenos agricultores, cuidados constantes, porque a erguida faz-se depois da poda, e depois do adubar vêm a cava e a redra. Ensinamentos que lhes foram passados de geração em geração e que apesar de terem fim à vista, ainda por cá continuam a enaltecer as nossas gentes transmontano-durienses.
Que delicioso texto Alina!
ResponderEliminarLindas imagens nos desenha através das palavras; parece-me tão familiar...ah...em outras vidas fui transmontano...
Que mais e mais memórias lhe façam escrever e nos brindar com outras belíssimas crônicas como a que aqui está.
Parabéns!
Texto muito bom! muito completo, boa forma de nos transmitir memórias!
ResponderEliminarRelembrar momentos do passado muitas vezes é bom, podemos lembrar de momentos bons que nos fizeram felizes e momentos ruins que nos ensinaram alguma lição para a vida.
ResponderEliminarParabéns Alina Sousa Vaz pela criatividade da descrição, onde conseguiu fazer rever-me nalguns dos momentos do texto..
É simplesmente fantástica a forma como articulas as palavras. Apetece ler mais e mais ... sempre!...
ResponderEliminarTambém eu tenho essas memórias ...
Muitos parabéns e estou desejosa de ler o próximo artigo.
Bjs
É simplesmente fantástica a forma como articulas as palavras. Apetece ler mais e mais ... sempre!
ResponderEliminarTambém eu tenho bem presentes algumas dessas memórias...
Parabéns pela bela escrita e estou desejosa pelo próximo artigo...
Bjs,