À
oitava edição o Prémio Literário José Saramago foi para Ondjaki, escritor e
poeta que nasceu em Luanda em 1977, autor do romance "Os Transparentes", publicado pela Caminho em 2012 e que é um retrato de Angola.
O prémio foi esta terça-feira anunciado na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, em Lisboa. Numa cerimónia em que a poeta angolana Ana Paula Tavares, e um dos membros do júri, fez o elogio do autor e da obra distinguida.
"Este prémio não é meu, este prémio é de Angola." Foi assim que Ondjaki agradeceu o prémio, no valor de 25 mil euros.
Em março de 2010, tivemos a oportunidade de entrevistar o escritor, a propósito do seu romance "Bom dia Camaradas":
Ricardo Pinto (RP):Considera que o facto de ter crescido, numa cidade multicultural como Luanda poderá ter contribuído para acentuar o seu lado criativo na Vida?
Ondjaki (O): Sim, não sei se há uma relação direta, mas Luanda tem um ritmo de vida, de quotidiano, que certamente influencia quem lá vive. Há quem se deixe contagiar menos ou mais, há quem seja mais ou menos exuberante nessa vivência, mas ela é poderosa no seu ritmo e pressão.
RP: A infância é um elemento muito produtivo na sua literatura. Noto que o seu olhar nessa mesma infância
é um olhar do presente sobre o seu passado. O porquê de todo esse fascínio pelo mundo infantil, mais concretamente, a sua infância?
Da esquerda para direita: Tchissola, Lelinha, Ondjaki, Kiesse, Dilo. Eu deveria ter 6 anos DR |
O: Qualquer tentativa de explicar esse fascínio, pela infância, está condenada a uma solução especulativa, quase abstrata... Talvez, como diria Manoel de Barros, eu só saiba falar disso, ficcionalmente. Depois teria que acrescentar que “não é bem assim”, no meu caso. Sei e gosto de falar de outras coisas, mas há um lado ficcional, que trata de uma infância de certo modo “autobiográfico”, que me faz escrever com ternura e com prazer. O que não acontece sempre. A verdade é que escrever sobre universos que tocam a minha infância muitas vezes se configura como uma “urgência estética”, e escrever sob esse estado de encantamento, é uma experiência muito agradável, do ponto de vista humano...
RP: Ao longo de um dos seus romances, "Bom Dia Camaradas", apercebemo-nos da facilidade com que reconstrói mundos, vivências e sobretudo cheiros com bastante pormenor. Podemos considerar que todo este processo se trata de uma espécie de encontro com o passado?
O: Não sei... Talvez o apelo aos universos ‘sensoriais’ seja um recurso para chegar a certos lugares da memória. Há sim, em mim, uma ‘boa nostalgia’ pela infância, sendo que é um mundo que, no presente e no futuro, tenho tendência para recordar como muito bom, tempo de felicidade, de encantamento pela simplicidade da vida, coisas que fui perdendo com a idade mais adulta, uma vez que “interpretar o mundo” acaba por complicar a visão que dele temos... De resto, é um recurso literário como qualquer outro, mais ou menos consciente, dependendo do momento da escrita.
Ondjaki com 5, 6 anos no seu jardim DR |
RP: Uma das temáticas presente nas suas obras é a guerra. Como é que foi crescer no meio dela?
O: Eu costumo dizer que as crianças e as gentes de Luanda tinham a sorte de nunca ter vivido “demasiado perto” da Guerra. Luanda sempre foi o centro político protegido da realidade mais bélica da guerra. Crescemos, então, no meio da “psicologia da guerra”, das notícias da guerra, dos ecos de uma guerra que sabíamos que acontecia sobretudo mais a Sul. E foi isso. Éramos muito crianças, e o terror associado ao facto de “ir para a guerra”, acompanhava mais os adolescentes do que a nós, meras crianças. Quando chegou a nossa adolescência, a guerra tinha adquirido já um outro formato, bem como o modo de incorporar jovens. Mas, sim, há digamos uma presença dos ecos da guerra na minha infância e adolescência. De resto, nada de traumático. Felizmente.
RP: No "Bom dia Camaradas", os cubanos são lembrados, como o povo que ajudou na reconstrução do seu país. O Ondjaki analisa este processo como “uma questão de solidariedade”. Alguma vez teve o feedback de alguns dos seus professores cubanos, acerca desta homenagem que lhes presta?
O: Não, infelizmente nunca os reencontrei, embora eu os procure há muitos anos. Já estive duas vezes em Cuba, (Fevereiro de 2010), onde foi publicada uma edição cubana do "Bom dia Camaradas", e sempre os refiro quando dou entrevistas em Havana. Mas ainda não aconteceu. Tenho muito desejo que isso venha a acontecer, sobretudo porque escrevi o livro também para eles, e porque gostaria de os abraçar e contar algumas estórias, saber deles, etc. Estou convicto que isso há-de de acontecer.
RP: A questão da oralidade africana é algo que está bem patente nos seus romances, através da forma
como explicita as ideias, dos vocábulos que utiliza, da construção frásica. Como é que vê a questão da oralidade, tão patente nos seus ancestrais? Acha que é fundamental na História de um povo, e daí quere-la transmitir nas suas obras?
"Bom Dia Camaradas" foi publicado, em dezembro de 2000 DR |
O: Não, não quero transmitir a “oralidade africana” nos meus romances. Quero escrever romances que têm um estilo e um ritmo que a própria estória-ficção me dita. É só isso. Porque é muito fácil dizer que “Bom dia Camaradas” ou o livro “Quantas madrugadas tem a noite” tem muita influência da oralidade africana, mas depois se formos falar do livro “O assobiador” ou mesmo o “Actu Sanguíneu”, onde é que fica essa oralidade? Penso que se trata de estilo e de necessidades, ou soluções, estéticas. Entenda que os vocábulos que utilizo e a construção frásica num livro como “Bom dia Camaradas”, são uma “solução estética” para o livro em causa. Servem melhor ao livro e à estória que queria contar. Não servem um propósito maior de transmitir a oralidade africana...
RP: Se eu lhe pedisse uma frase, para cada um, que caracterizasse a literatura de Luandino Vieira, Mia Couto e José Eduardo Agualusa. Quais seriam essas frases?
O: Não saberia dizer... São três importantes escritores de Angola e Moçambique, com trabalhos e contextos distintos entre si. Mas preciso dizer que Luandino Vieira e, por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho, são dois autores que estão à altura de receber um Nobel. Bem, é isso que eu sinto como leitor universal, não como cidadão angolano.
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