A verdade?!
Querem-na?
Violem as flores, arrasem os campos, escavem trincheiras e comprem armas, profanem sepulturas, mutilem
cadáveres.
REGINA SARDOEIRA |
Verdade-conceito, verdade-morte, moribunda, recém-nascida, treva, céu-aberto!
Verdade-coerência. Verdade-acordo. Verdade-contradição. Verdade-fenómeno. Epifenómeno. Númeno. Arquétipo. Dicotomia. Transe. Esquizofrenia. Paranóia. Sonambulismo lúcido. Lucidez onírica. Verdade-símbolo, que tanto pode ser como não ser, estar como não estar. Verdade – Homem: medida de todas as coisas. Medida que a si própria não foi capaz de medir, medida que a mentira corrompeu, medida cujo metro não tem padrão, arcaboiço impalpável, flutuante, cujo esqueleto chocalha em qualquer esquina, com qualquer vendaval.
Homem. O idêntico. O uno. O mesmo. Aquele que se move, aquele que tem pés que o levam rumo ao destino que ele próprio estabeleceu, arrogantemente, desfrutando um destino não desfrutável. Homem suicida correndo atrás da nuvem que ignora para onde vai, que segue o homem que por sua vez a segue e é seguido. Como um espantalho pendura-se nos campos de trigo, de braços abertos, espanta pássaros inexistentes, que apesar disso comem todo o trigo do qual, apesar disso, os homens fazem pão.
A verdade, não se esqueçam da verdade, ouviram? Procurem-na.
Vêem ali aqueles baús carunchosos, aquelas malas ferrugentas, aqueles sacos cheios de bolor? São, sem dúvida (porque haveríamos de duvidar?) os fiéis guardiães da verdade. Procurem-na, abram as malas, violem os baús, rompam os sacos.
Perguntam-me pela chave? Ah, não existe, aliás, nem fechadura, já deram conta?
Mas violar é terrível, não é? Só que eu digo-vos: a verdade é aquilo que vedes ali.
Minto?! É claro que minto, não estou a ver nenhum baú e, ainda que o visse, de que serviria vê-lo, se vós não vedes?
Perdoai-me. Podeis?
Não, é claro, ninguém perdoa ser enganado: por isso a vida é um eterno rancor, uma eterna discórdia de ofendidos em busca do ofensor, de ultrajados sem bode expiatório.
Ah, já lá volto! Foi aquela teia de aranha que me enredou e já a aranha me pedia desculpas. Na sua fome viu-me mosca, eu fui a verdade do seu apetite. Tal como vós na vossa fome de certeza, vedes a certeza em qualquer miragem, a lua cheia em qualquer charco estagnado.
Chegou o tempo da lua cheia, perfumada e dúctil, espinhosa e plena de cetim!…Lua cheia… Cheia de quê a não ser da ilusão branca, do conceito aleatório, do leite, sim, do leite que o úbere das vacas rejeitou num esguicho e projectou no céu a via láctea. Ah, lua, rejeito-te. És falsa, quarto minguante, pequeno halo no negro do céu, lua-planeta, mas zero, zero, zero…
A verdade, não se esqueçam dela ouviram?
Tenho ali paradoxos infindáveis e todos eles exalam perfumes estonteantes, verdades irrefutáveis. Escavem, escavem sempre. O mapa do tesouro escondido aponta para baixo, não acreditem naqueles que levantam o dedo… é debaixo que nasce a fonte.
Sabem por que razão os homens lutam, porque discutem, porque colocam entre si fronteiras e grades? Ah, é uma simples brincadeira, não os tomem a sério, brincar é a única ocupação que resta e viver, afinal, é um luxo.
Um luxo!
Ah, vaidosos, arrogantes, comprastes essas vidazinhas crista de galo, corno de touro enfurecido? Comprastes?
Claro, só que a moeda era falsa, como toda a moeda, aliás: fostes iludidos pelo brilho, qualquer brilho ilude, o brilho é nada.
Mas o meu tema é só, unicamente, a verdade. E a verdade muda, muda, muda.
VERDADE, prestai atenção.
Este V de verdade chama-se letra, é a 21ª letra do alfabeto, até. Estou a ser exacta? Pois. O V existe e tanto existe que lá está, alinhado entre o U e o X. É importante. Tem um lugar. Soa. Ressoa. Sibila.
Chama-se também consoante e o meu dicionário diz que significa conveniente, logo deve significar porque um dicionário é… UM DICIONÁRIO, uma autoridade, tem a verdade, e o V é a primeira letra da verdade.
Começamos bem, como vêem. O V é conveniente – convém – é coerente, existe, como duvidar? Ora reparem: V. Pronunciem. Pronunciaram? Que tal? Podem acaso duvidar da conveniência absoluta, irrefutável, da letra V sem a qual nenhuma verdade seria possível?
Bem, segue-se-lhe o E, 5ª letra do alfabeto… será que estou a convencê-los?
A segunda letra, sem a qual a pobre verdade jamais poderia ser pronunciada, também existe: é a 5ª letra do alfabeto, está lá, perfilada, redondinha, entre o D e o F. Chama-se VOGAL, serve para chamar, ora experimentem! Experimentaram? E então? Convencidos?
Pois é, acho que vos demonstrei, irrefutavelmente, que a verdade existe, é formada por elementos que ninguém jamais conseguirá contestar, tal como os átomos, as células, as partículas mais difusas sem as quais nada existiria.
Ah, dizem-me que estou a ser ridícula? Pueril? É claro, mas isto de palavras é mesmo assim: ridículo, pueril.
Reparem. Nós dizemos VERDADE, sete letras firmes, absolutas, inegáveis. Os ingleses dizem TRUTH, outras letras, também elas absolutas, inegáveis. Os gregos dizemALHQEIA (ALETEIA) e, também eles não ousarão negar o valor de cada som, de cada símbolo. Os russos escrevem PRAVDA e ei-los convictos da verdade da sua pravda… ridículo? Pueril?
Verdade, truth, alhqeia (aleteia), pravda… reparem, olhem, muda ou não muda? Existe ou não existe?
Não vejo mesmo que problema mais profundo poderíamos nós descobrir para os nossos ócios comuns. Falem da física. Da química. Matérias profundíssimas, seriíssimas, o auge. Mas todos os dias os químicos e os físicos resolvem problemas cada vez mais intrincados, cada vez mais aproximados da explicação definitiva e final, da verdade! E, apesar disso, essa tal verdade, que eles, físicos e químicos, resolvem em equações sapientíssimas furta-se à unanimidade!…
Estou a ser superficial? É claro, tinha que estar e vós tínheis que dar conta disso: afinal credes-vos sapientíssimos.
A verdade não pode ser uma simples palavra!… A verdade é qualquer coisa!
Qualquer coisa?! Por exemplo: uma rosa? Uma couve? Um coelho? Um carrinho de mão?
Que horror! Que falta de gosto nos exemplos! Decididamente, sem a vossa ajuda não poderei avançar muito no capítulo da seriedade que viveis a reclamar.
Dizem que por detrás das palavras há as ideias. Logo, as letras da palavra verdade são o suporte concreto de uma ideia qualquer. E agora paro. E fico com a caneta na mão, com os olhos em alvo, estupidificada, paralisada – ou melhor: fiquei uns momentos até que saí do marasmo para vos dizer que por mais que procure, que revolva sem cessar as areias movediças do deserto cultural dos homens nada mais encontro que palavras. Ou pedras. Ou cimento. Ou ferro. Ou bronze. (Interrompo a lista.). Quanto às ideias (mas o que é uma ideia?…) não posso continuar uma vez que escrevi aquele parêntese.
(Uma ideia é o suporte de uma palavra, que, por sua vez simboliza uma ideia, que ainda por cima pode simbolizar um objecto que foi construído com base numa ideia e que, por isso mesmo, existe. Compreenderam?)
E então a verdade existe. Quem disse que não existia? Ninguém, que pergunta absurda! A verdade existe
Olhem:
V-E-R-D-A-D-E
Por causa destas sete letras morreu Sócrates (por acaso em grego também são sete, mas é só por acaso, acreditem-me); por causa delas Kant levou uma vida murcha; Nietzsche enlouqueceu (interrompo também a lista e não falo em Cristo que foi pregado na cruz com pregos que também eram a verdade em judeu.) Por causa dessas sete letras os homens lutam, roubam, mentem… sim, mentem, não estou distraída, mentem por causa da verdade… porque a verdade é uma mentira, sabiam?
Logo, eu afirmo: a verdade existe e é muito importante. Embora, é claro, a verdade seja muito mentirosa, muito hipócrita, horrivelmente dissimulada. É a justificação dos filósofos, esses impotentes, incapazes da ejaculação miraculosa que tudo resolveria.
Eu sonho com um livro em branco, com uma única palavra, escrita na única linha, da única página. Sonho, digo bem.
E essa única palavra, escrita na única linha, da única página seria sabem o quê?
Verdade!
Compreenderam? Claro que não, para que estão para aí a acenar com a cabeça dizendo que sim? Assemelhais-vos aos asnos a sacudir a mosca. O vosso orgulho impede-vos de confessar ignorância, perplexidade? Deitai o orgulho à valeta e raciocinai um pouco.
No dia em que a verdade se revelar, todos os livros, todas as construções humanas vão perder o sentido e então a palavra verdade fará sentido.
Já não a quereis? Claro, tendes medo. O nada é horrível, pensar o nada uma abominação. E então vede bem: Verdade = Nada.
Esgotei o assunto? De modo nenhum. O nada é de todos os temas o mais inesgotável e sobre o nada é possível escrever volumes, construir arranha-céus, esculpir estátuas gigantescas. Não vedes? Em cada coisa, em cada átomo, em cada sombra há a semente do nada. Aliás, o nada é a essência de todas as coisas. Ah, o nada! A negação! A inexistência! A inessência! (Fim da lista.).
O nada é belo. É escuro. É vazio. É fechar os olhos. Adormecer. O coração parou. O sangue gelou. E então tudo começa, porque não haveria de começar já que o nada existe se eu falo nele, se eu tenho a palavra que o amarra à existência com o nó das letras, com o suporte das ideias, com o parafuso da lógica? O nada está lá, pendurado no tecto da vida, como sua luz tenebrosa, seu archote invertido… o NADA!
Se nós falamos dele, como negá-lo depois? Dizendo que não dissemos? Metendo a mão ao bolso depois de com ela agarrarmos a essência com que o construímos?
Eu encontrei muitos nadas no caminho: nadas de gente, nadas de paisagem, nadas de beleza, nadas de horror, nadas de miséria, nadas de memória… nadas, nadas, nadas… E todos eles eram verdadeiros, garanto. Eu apalpei-os, vi-os, cheirei-os, ouvi-os…ah, como negar que eles existem?
Oiçam. Estou a escrever sobre a verdade, apetece-me possui-la, sou muito ávida, sou ambiciosa, jamais me contentará apanhar as migalhas que caíram do prato dos outros.
Reparem: só eu conto neste universo atravancado de espaço, prenhe de matéria, ou de energia, ou seja lá o que for que os químicos inventaram para designar o fermento invisível que tapa todos os buracos. Só eu conto, só eu existo, só eu tomo consciência de mim. Eu sou a verdade!
Mas esta palavra EU, de repente, como que carece de um conteúdo mais potente que o meu próprio arcaboiço corpóreo, a palavra EU está assim como que pendurada numa abstracção que a ninguém interessará, decerto. Deixem lá, não vou riscar a palavra EU já que, cada um de vós ao repeti-la, modificará a frase. Ora digam: Eu sou a verdade!
Disseram? Então, entenderam onde quero chegar? (Que importa que tenham entendido ou não?)
A vida, falemos da vida.
A vida são formas e há-as de todos tamanhos e de todas as espécies, para todos os gostos. A vida é esta sensualidade, este querer agarrar, assumir em nós o que não somos nós, a vida é querer possuir, penetrar, fender. É a loucura dos sensatos, irremediavelmente condenados a ser loucos no tempo já que a sensatez é a antítese da vida, a coerência, a morte de toda a coerência, cujo único sentido é ser incoerente, fatalmente desprovida de senso, totalmente desrazoável, num mundo de razoáveis sem razão.
Dizei-me: qual a verdade da vida? Qual a verdade do ser?
Deram-vo-la as máximas dos filósofos? Estais satisfeitos com as alquimias misteriosas dos cientistas despenteados de todos os tempos?
Se vo-la deram porque continuais à procura?
Vamos deitar-lhes fogo? Atear um imenso incêndio de conceitos e fórmulas infalíveis?
Que belo! Que archote fantástico! Quais Neros ante Roma incendiada, poderíamos tocar na cítara o poema cínico, a melopeia sublime, a sinfonia intraduzível em sons.
Neros, sejamos Neros, incendiários das Romas corruptas dos falsos sistemas e das fórmulas vãs. Nós próprios que temos de menos corrupto do que esse Nero pejado de vermes? Nós próprios que virtude alardeamos que não seja sinónima da arrogância do Nero romano?
Então, vá, peguem no archote e incendeiem Roma!
Já sei a resposta. Sois pessoas sérias, respeitáveis, tendes escrúpulos morais, receais matar inocentes e acumulastes tantos bens, apegastes-vos de tal modo aos vossos patrimónios materiais e espirituais que jamais iluminareis o mundo. Porque o fogo ilumina, mais, o fogo purifica. E vocês sabem disso, vocês são espertos e sabem também que uma vez queimado tudo isso que apoia a vossa existência teríeis a visão do nada, essa visão no escuro, e, como crianças, tendes muito medo do escuro.
Grande texto! Parabéns!
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