PEDRO MONTERROSO |
NOTA: Narração feita num tribunal defendendo a bruxa que, ao que se consta, envenenou a princesa com uma maçã. Um conto do viés.
A velha bruxa era uma mulher gorda, atarracada, que vestia roupas doadas ou encontradas, quase sempre rasgadas. E cabelos desgrenhados, tal como as roupas, escurecido por um temperamento sombrio e malicioso. Acusam-na repetidamente de ter enfeitiçado a princesa com uma maçã. Pelo constado, terá a dita ficado 1000 anos num sono profundo, o qual só o beijo de um príncipe apaixonado poderia interromper.
(No seguimento desta descrição, invento um tribunal. Afinal quem manda na minha imaginação?)
Perante Vossa Excelência, senhor doutor juíz (imaginário), cabe-me o papel da defesa e da análise honesta deste e de outros contos em geral, que andam para aí a papagaiar às crianças. Dadas as minhas funções enquanto pedagogo e, às vezes, criança que não cresceu, cabe-me o dever de as defender da opressão dos adultos.
Para começar, na minha função, também de contador de estórias, começo por desajetivar a que, muito ignorantemente, os contos e os contadores têm vindo a adjetivar. Não quero, pois, compactuar com a ignorância de grande parte dos contos infantis e pretendo dedicar umas palavras à memória da tal velha. Não tenciono, compreendam, simploriamente desculpá-la pelo seu ato. Apenas pretendo levantar umas questõezinhas para bem da moral comum e do desenvolvimento crítico das crianças que, como todos os humanos, são reprodutores da cultura mas não papagaios. Como as estórias são eternas, sei como é faraónica e dificultosa a tarefa de defender uma velha matreira, suja e de voz esganiçada, que matam de todas as vezes que uma criança ouve um conto.
Recordo que a vida no seu percurso não gosta de consagrar ninguém. A todos dá oportunidades de viver por determinado tempo, nunca demasiado, mas sempre o suficiente para qualquer desígnio mais misterioso que a própria vida. São os factos conhecidos e as pessoas que narram certos contos que, muitas vezes nem os tendo vivenciado, consagram as pessoas na história.
Tudo começa nas estórias. Nas estórias infantis. Salvaguardo-me do julgamento da pobre e velha bruxa que morava num pobre e velho e decadente casebre no meio do velho e obscuro matagal. Não era floresta nenhuma, como dizem. Eram uns anexos ocultos em Lisboa, onde no máximo os rios são fios de água sujos e os prados são ervas daninhas amalerecidas pelo sol. E a princesa? Senhor doutor juíz, a princesa não vivia num palacete rural da Baviera. Era citadina, vivia numa Penthouse em Chelsea, em Saint Germain-des-Prés, ou em Manhattan. Na Baviera, sim, às vezes, ao fim de semana, para os cuidados da formosura.
Então, quem sou eu, quem somos nós que sem analisar a situação e só tendo lido a vida da mulher por tangência, através de um conto, podemos julgar a velha bruxa, sem atender à sua biografia, ou pelo menos à leitura de outras estórias e outras versões? Quem somos nós, Vossa Excelência?
A velha bruxa cometeu um grave erro. Ofereceu uma maçã vermelha à princesa. Acusam-na de homicídio mas apoiam-se num conteco. Sobre ela se diz que envenenou a princesa com uma maçã. Não sei se isso é verdade, ninguém o pode confirmar. Mas tenho muitas dúvidas. Sei, porém, que se revertêssemos os papéis, e a princesa que enfeitiçada tivesse sido a “enfeitiçadora”, ao revés de ter sido a vítima tivesse sido a opressora, o conto teria sido narrado de outro modo. Seria assim:
Era uma vez, uma bela e inocente princesa que, tendo encontrado uma velha pobre e faminta na cidade, prestou-se para auxiliar. Ofereceu-lhe uma maçã, que era a melhor maçã da melhor mercearia do quarteirão. Ofereceu-lhe também uma refeição vegana, com todos os produtos biológicos da região. Contudo, a velha, muito velha, sucumbiu aos seus cuidados. Nos lábios desenhava um sorriso agradecendo a servidão da esbelta, nórdica e loira princesa. Morreu naturalmente.
E assim, senhor doutor juiz, seria mais um conto para crianças. Acha que falaríamos em homicídio ou em feitiço, através de intoxicação alimentar?
Na verdade, a velha bruxa afinal não era bruxa e nem cozinhava poções, cozinhava apenas porções. De pouca comida em muita água, para render muito, para os 11 filhos famintos, que todos os dias chamava à janela. Filhos esses que quando alguém na cidade os via a pedir esmola, porque emprego já seria demasiado, se desviava ou fugia a sete, oito ou nove pés.
A ironia da coisa é que a dona bruxa se tornou velha e gorda, feia e má porque o narrador não gostava de pessoas gordas, feias, velhas. Nem pobres. E como a um conto se acrescenta um ponto, a voz dos malícia acrescenta dois - pontos desmesurados, vírgulas gaiatas, verbos gandulos e adjetivos cangalheiros que nunca testemunharão verdade alguma. E reproduzem a cultura e as crianças.
Além do mais, é fácil tornar-se bruxa num conto de fadas. De todas as fadas, magrinhas, delgadas e madrinhas, que trazem presentes às crianças, e se enlevam no ar dos céus da primavera com pós de pirlimpimpim. Como não há-de sobrar à velha gorda uma vassoura, enrugada, com rugas maiores que aquela que ostenta no nariz, para voar nas noites de inverno?
Por fim, mesmo que fosse verdade, que esta mulher assassinasse a princesa, há algo mais grave em todas as estórias, Vossa Excelência. Nomeadamente nas estórias que contam às crianças. A reprodução do racismo. Da beleza que é feiura, da tez da pele que é morena, das roupas que são rasgadas. E da pessoa que é criminosa, por junção dos factos.
Eu, não vivendo num conto de fadas, invado um, senhor doutor juíz. E se lá vivesse seria feiticeiro. Conheço muitos que o são e compreendo que eles digam puta que pariu às princesas:
Bastava-me o peso de trazer adjetivada a priori a minha vida pela circunstâncias de onde e como nasci. Portanto, se a velha gorda disse “basta!” e até realmente colocasse a princesa num sono de 1000 anos, com a contrapartida de vir um príncipe que a quisesse beijar e casar com ela, eu resguardo o seu direito à inocência.
Mas como ninguém me ouve, e o senhor doutor juíz é imaginário, sei que morrerá a velha mil vezes, até que as estórias das crianças passem a ser críticas e desprovidas de julgamentos preconceituosos.
"Puta bela adormecida...", não diz, por fim, a velha exclamativa em cada conto que morre mas digo eu, com ponto de exclamação e tudo, sempre que ela adormece.
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