PEDRO MONTERROSO |
Hoje, olhando para trás alguns anos, observo que aterro sempre mais
suavemente no aeroporto Francisco Sá Carneiro do que descolo. No regresso os
caminhos são sempre curtos, além de que vou para descansar e deixo os dias de
trabalho à distância dos quilómetros e do tempo. Com a mochila de viagem sobre
os ombros, encaminho-me para os transportes que me levarão a casa. Ainda é
cedo, essa é a vantagem de levantar cedo – dá saúde, faz crescer e dá para
aproveitar mais um pouco das férias, que são sempre curtas.
Chego a Amarante e a ansiedade, que ainda tinha em chegar, deixa-se cair
no regaço de uma cadeira da primeira esplanada da praça, à qual lhe procede um
café sobre a mesa. Uma boleia para casa não tardará em chegar. Enquanto isso,
espero de braços levantados e dedos cruzados por detrás da cabeça, a segurar o
olhar vazio.
Eis que alguém passa. Pousa o olhar sobre mim e, num passo repentino,
aproxima-se. Entre o sorriso e o aperto de mão, com um há-anos-que-não-te-via
nos olhos, descortino toda a memória para reconhecer aquela cara. Não consigo,
tenho péssima lembrança para rostos. Mas, antes que tenha tempo para confirmar
a minha pouca destreza mental no assunto, vejo-me interpelado (ou devo dizer
atropelado) com a pergunta do recém-cumprimentado:
E então, Pedro, o que fazes, o que é feito de ti? – Pergunta-me.
Face a esta pergunta, fico sempre desconsertado. Não sei se pela
repetição com que é feita, pelos que não vês há muito tempo, se pelo vazio que
a mesma parecer sempre carregar. Pressupõe sempre uma narração ficcionada daquilo
fazes: que tens um emprego muito bom, que vives não sei onde, que és casado e
tens filhos… Enfim, um percurso não se enquadra na moldura. Resolvo responder
da forma mais cheia que encontro:
Nada. – Olha isso mesmo, que bem pensado,
n-a-d-a, dou por mim a pensar para com os meus botões – Neste preciso
momento: nada. – Devolvo-lhe uma resposta sobranceira de quem não está para
muitas conversas e…
Nada? – Adivinho no olhar de pasmo do
remetente. – Quem nada é peixe. – Vocifera com um sorriso.
Espero uma boleia. Mas quem espera desespera, então não espero. Quando
chegar, chegou. Não faço nada.
O meu interlocutor, no meio da desconversa, insiste:
Mas que é feito de ti? Em que trabalhas? Onde?
Obviamente, quer saber mais para além do momento presente, não tendo a
minha resposta de alguma forma satisfeito a sua curiosidade. Afinal, todos
querem sempre saber mais do que aquilo que me perguntam. As respostas curtas,
às vezes, são as piores, são-lhes exigidas explicações.
Com o olhar de quem me conhece, compenetra o olhar no meu café. Parece
obstinado a ficar. Quanto a mim, continuo a lutar na minha memória pelo
escrutínio das formas daquelas feições.
Em que trabalho? Olha –
respondo-lhe, por final -, no momento não trabalho. Comprei o tempo com a
força do meu trabalho. Chamem-lhe férias que é aquilo que, trocado por miúdos,
traduzo em tempo. Comprei o tempo ocioso e despreocupado que é a minha forma de
felicidade. Como vês, sento-me neste café a ver a banda passar, como
depreciativa (e infelizmente) se diz por estes lados… Aliás, não teria de haver
nenhuma depreciação dos que ficam a ver a banda passar. Perguntar-lhes em que
trabalham é que deveria ser uma ofensa!
Não serão os meditativos ou aqueles que simplesmente ficam a ver, os que
terão uma mensagem de esperança para a nossa sociedade? É interessante observar
que as práticas budistas que, muito resumidamente, são a arte de não pensar, se
expandam cada vez mais no Ocidente, quando mais se pensa e se faz. Imagina que,
nas grandes empresas, as responsáveis pela manutenção da máquina do fazer
constante, é onde estas práticas são postas em prática, em “oferta” para os
seus trabalhadores. Meditação Zen, Mindfullness, Yoga, Qi Chong, para depois
continuar a produzir. A fazer, fazer, fazer. Porque só existes quando fazes. E
quando não fazes, dizes que não fazes e pões uma foto nas redes sociais. Decerto,
para continuares a existir, esperas o feedback dos que te vêem e colocas uns
likes nos que, como tu, também “não fazem”.
Lembro-me de uma situação caricata que me ocorreu há uns tempos. Alguém
se apressava em gestos rápidos e dizia que estava com pressa. “Com pressa para
quê?”, perguntava-lhe a sua companheira. “Para ir meditar”, respondia-lhe aos
soluços. O que parece ser uma situação de humor, não é menos que uma das
contradições em que a sociedade funda as suas bases.
Enfim, caro desconhecido, afinal que melhor prática de meditação
conheces que esta de encher a boca e dizer. Não faço nada. Nichts. Niente.
O tal desconhecido, que entretanto me parece ouvir até os pensamentos,
dissimula um olhar para o relógio, que reclama a falta de tempo. A falta de
tempo é copiosamente proporcional ao preço e à grandeza dos relógios. Desengane-se,
conquanto, quem pensa que se ele se vai embora. Não sei se por mera
consideração pela minha pessoa (coisas da vida, às vezes somos considerados por
rostos enublados da nossa memória), ou porque o que eu lhe digo lhe faz
despoletar uma luta interna contra a obrigatoriedade da rotina, dá um trago
final no seu café e responde-me:
Chama-se Il dolce far niente, expressão italiana, que traduz muito bem o
que deveria ser nada fazer. E diz que é doce – complementa.
Pois então que o bebamos neste café. - Respondo-lhe mais convicto do que esperava responder.
E ali ficamos. Sem mais que fazer. Chega a minha boleia, ele coloca a
cadeira no lugar e, por gentileza, depois de num aperto de mão amistoso,
dirige-se para pagar a conta. Continuo sem saber quem é. Não me lembro do seu
nome. Olha, caro desconhecido, dedico-te este texto, que é a forma melhor que
tenho de agradecer estes pequenos nadas da vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário