domingo, 22 de março de 2015

QUIMERA

MIGUEL GOMES
Falaste na Primavera. 

Para mim bastou-me, foi como se a própria palavra te sobrasse pelos ramos e tu mesma florisses.

Aliás, sempre te vi em flor. 

Renascida a cada cinza atiçada, não como fénix, mas como uma companhia solitária há muito desejada.

A estrada caminhou ao meu lado, conta-me histórias de várias léguas, medidas distantes para chegar a quem nos quer hoje como antes. 

Eu não falo. 

Basta-me ouvir-me e desabafar com o vento, esse, de repente, sem se mostrar interessado, começa a soprar quando paro de falar, apenas como quem me diz, vá, continua, estava a ouvir. 

Tem uns trejeitos de adulto criança, fingindo ouvir quem de si se fala, mesmo quando aborrecido desata a brincar a meus pés, mesmo que isso represente levantar areia e pó para os olhos, trazer consigo gotículas de um mar que ribomba ali, ao fundo, embrulhado com a praia, ali, ao fundo, nas mãos petizes da menina que segura a sua saia.

Faltarão menos de quarenta passos, uns quantos sacrifícios agarrados aos braços, para se erguer no monte aquela que te fará ao nome, chamar-lhe-ião cruz, mas tu de baptismo nasceste apenas jesus e eu, de metáfora baptizado, primeiro e último nome da parábola, finjo que não te ouço quando sobre mim paira o fino fio do aço da espada. 

Sim, parece-me que sem nós somos mesmo nada.

Já o vento se espreguiça, adivinho-o entediado, ouviu-me falar dos passos e das passadas e conhecendo os meus passados, sabe que o primeiro movimento que farei será permanecer no mesmo local, imóvel, a aguardar que as estrelas se conjuguem, logo a seguir às vogais, da mesma forma que estavam quando olhei para cima e vi, claramente, outro eu que para mim olhava.

Não, parece-me que sem mim não sou mesmo nada.

Se o vento empurra para barlavento estradas que nunca percorrerei, sobejam-me todos os volumes que cubiquei, terra sobre mim que jorrei, para continuar no defeso da imaginação e ver surgir um confuso Alma Grande que traz Garrincha pela mão.

Saído do ventre que me pariu, aterro neste corpo que nunca minh'alma viu, excepto pelos desacordos e pelas peregrinações que faço entre versos ou, então, pelos universos, todos eles feito de olhos acessos que é como quem se vê pela primeira vez visto.

Ah, agora sim, eu sem mim sou isto!

Desajeitadamente arranjo o colarinho e dou uns passos a olhar os pés, enquanto o piso de madeira não me faltar sei que em ti está quem és, mas mesmo que me saiba de papel feito, não como avião ou barco, mas como textura e secura de palavras e vidas, as mesmas que mencionei não serem partidas, esta respiração arritmada que me escreve entre a parede e a espada.

Canso-me um pouco da procura, a miragem que a tua ausência tem está em cada olhar mais profundo que escavo, encontro um ou outro sonho escravo, sei que me dizem não ter eu cura, pouco me interessa tal agrura, se me encontram doente, que farão quando virem que é na ausência de tempo que tudo perdura?

Hoje não, que me cansa a noite e não sou de alterar discursos, mas um dia, lá para meados de mim, irei acordar o corpo a cada manhã e esquecido que sou dos sonhos que prometo, irei ver-me pelos meus olhos, segurando o espelho retrovisor entre os dedos, ah eu não sou cá de medos, tão pouco segredos, e alcançarei aquele pulsar longínquo que me faz alimentar o mundo porque as palavras têm pouso, mas quem escreve sonha voltar novamente vagabundo.

Distraio-me nas cores do poesia, ainda que em prosa, tu abres-me o vidro e entra por mim o cheiro de ti e de maresia, falas-me nas cores do arco-íris que viste numa rosa. Sem ti o que faria? 

Já tinha esquecido que tinhas-me falado da Primavera...

Sorris. Sorrio. Sem nós a nossa vida era uma quimera.

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