REGINA SARDOEIRA |
Ευθανασία. Eutanásia. Boa morte. Morte feliz.
Analiso a palavra grega e, logo de seguida, reflito sobre o seu significado. Não consigo absorver e compreender, com inteireza e nitidez, os conceitos subjacentes ao termo eutanásia (ευ "bom", θάνατος "morte"). E lanço uma questão: pode a morte ser boa, enquanto morte? E mais: pode o ato desencadeador da morte, que o termo eutanásia encerra, ser considerado bom, em si?
Se a morte é boa ou não, jamais seremos capazes de o decidir com acerto. Dizem: “Fulano morreu feliz, tinha um sorriso nos lábios quando se foi.”
E contudo, esse fechar de olhos sorridente, esse deixar de respirar tranquilo são mera aparência dos sentimentos ou da falta deles que presidiram ao derradeiro momento e de que, do exterior, aquele que testemunha a morte e a adjetiva nada pode conhecer.
Apenas aquele que morre, e talvez saiba que morre, no derradeiro instante lograria, se pudesse, responder à questão. Mas decerto não pode: porque a morte é o futuro do momento em que ele sente que morre. E esse futuro não pode a consciência presentificá-lo e torná-lo passado, para sobre ele refletir e depois concetualizar.
Teoricamente, a morte deveria ser boa porque é a circunstância definitiva e final da existência. É o polo oposto da dicotomia ontológica, o encerramento do ser, algum tempo depois do seu início. Mas, do mesmo modo que o parto, pelo qual fomos dados à luz e se fez num esforço doloroso de sair do útero e depois respirar e depois sentir os arranhões inevitáveis de um mundo exterior para o qual nada preparou o feto, este parto que a nossa mente obnubila por inteiro, enquanto ato e processo, também a morte permanece encerrada numa redoma de inconsciência e olvido.
E então, vejamos a vida deste modo: nascemos, sem o desejar, de facto, já que forças e vontades que nos são alheias nos deram à luz, enquanto seres; e depois iremos morrer num certo momento, por mecanismos biológicos, cosmológicos ou metafísicos, (nesta sequência ou ao contrário ou nem uma coisa nem outra) que nos escaparão sempre – enquanto ato verificável, enquanto futuro tornado presente e logo sujeito à possibilidade de análise.
De outro teor é, porém, a nossa perspetiva da morte, quando são os outros que morrem. Deles, percebemos e sentimos que morreram, deixando vago um lugar; sobre eles, enquanto entidades que nos abandonaram, tecemos conjeturas, formulamos teorias, estabelecemos comparações, engendramos motivos.
Desse modo, cremos saber, exatamente, o que é a morte e o que é morrer, principalmente quando testemunhamos o momento ou conhecemos as circunstâncias que o antecederam. E todavia, aquilo que sabemos é uma mera ilusão, um esboço, uma aparência. Somos nós que nos avaliamos pessoalmente quando alguém morre no círculo da nossa vida; somos nós que tecemos hipóteses e formulamos teorias sempre que por nós passa esse acontecimento da vida. Porque ele passa-se sempre com um outro eu e nós permanecemos na exterioridade, com o nosso acervo de pensamentos, sentimentos e reações, tudo o que dizemos sobre a morte é apenas fraseado inconsequente que nada explica e apenas pode revelar alguma verdade acerca de nós mesmos…se revelar.
E então como podemos ser os paladinos dessa designada “morte boa” ou eutanásia e, convictamente, apressarmos a morte de um indivíduo que sofre, porque, do fundo da nossa alegada sapiência sobre a morte, achamos que essa é a melhor solução?
Não podemos. Não o pode a medicina sem contrariar o juramento de Hipócrates, pelo qual se comprometeu a salvar vidas; não o pode qualquer um de nós, mesmo que o familiar desesperado nos encomende essa tarefa macabra. E nem sequer estou a falar de “dever”, reparem, não é isso que importa: porque os deveres foram criados pelos homens, para se autorregularem, e ficam aquém ou vão além daquilo que, enquanto humanos, podemos fazer.
Estou a falar por experiência própria, porque só dessa maneira consigo articular pensamentos, ser verídica e dar testemunho de mim, através das palavras. Estou a falar por experiência porque, até ao dia de ontem, tive nas minhas mãos a vida de um ser, que, desenganado pelas caraterísticas letais da enfermidade, definharia e morreria, mais tarde ou mais cedo. Não era uma pessoa, no sentido comum que usamos dar à palavra pessoa; para mim era-o, e mais: fazia parte da minha família.
Aliás esse meu companheiro tornara-se tão humano nos seus 16 anos de vida que eu entendia-lhe os gestos e os desejos e sei que ele se esforçou muito para me entender a mim e a quem com ele privou durante o seu tempo de vida.
Não falava, é certo, não usava para comunicar o nosso código linguístico, não tinha o cérebro programado para entender explicações e conselhos que poderíamos dar-lhe. Não possuía os mecanismos que nós temos para ir dando conta da sua visão do mundo, dos seus desejos e necessidades. Mas, à sua maneira de felino superior, no usufruto da observação perspicaz dos humanos que o rodearam ganhou, ele próprio, humanidade.
Soube então que a morte do animal estaria iminente e tive essa noção absoluta quando tomei conhecimento do resultado do último exame médico, na quinta-feira passada. Percebi, nas palavras da médica veterinária que o assistiu, a alusão discreta à possibilidade da eutanásia como recurso limite; alimentei em mim a ideia, tentei assimilá-la e não pude. Decidi então, deixar aquele animal, pendente entre um fio de vida e o momento final, viver os seus últimos dias como quis, dormir se desejasse e não comer se o alimento lhe desagradasse; por fim, na noite de sábado, soube que a hora estava a chegar e só pude pô-lo no meu colo, afagá-lo, dar-lhe sinais de ânimo, enquanto ele se debatia numa espécie de estertor agónico, entremeado de autênticos gritos. Até que, aparentemente, adormeceu.
Estivemos com ele toda a noite de sábado para domingo. Observamos-lhe a respiração ténue, soubemos que ainda vivia, numa dimensão outra, mas sorvendo minimamente o ar da respiração. Por fim, deixou de respirar e ali ficou, na mesma posição, quieto e frio se bem que de um frio moderado que o pelo macio parecia abafar.
Hoje, ao fim do dia, entreguei-o à terra e agora sinto-o aqui, no espaço que ele habitou durante 16 anos e meio, sinto-lhe a presença do olhar expressivo e arguto, do andar ondeante e nitidamente orientado para os seus interesses, da figura bem esculpida de gato opulento. De certo modo, o espírito do gato vagueia à minha volta, e não é apenas a minha imaginação e a minha vontade que criaram esta forte convicção, mas a certeza de que a energia que lhe passou do corpo para as coisas, para o ar, para mim, para os outros, perdurará.
Eutanásia? Morte boa? Não poderei dizer se o último bafo de respiração do meu gato foi ou não foi uma boa sensação: mas sei que a natureza que o fez nascer aqui, debaixo deste mesmo teto, a natureza que o fez atingir uma longevidade notável, para um felino, a natureza que o vitimou de uma enfermidade incurável, cumpriu o seu papel e fê-lo dar o último suspiro, num local que ele amava, à sua maneira de gato.
Mesmo estando tomada pelo sentimento da perda, sei que cumpri o meu papel com acerto deixando a natureza seguir o seu curso. Até ao fim.
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