HÉLDER BARROS |
A Teresa tinha 16 anos e estava institucionalizada num lar de acolhimento de menores, pois que a sua família não reunia competências sociais e meios físicos, para realizar a sua educação com o mínimo de estabilidade e de salubridade mental.
Andava a frequentar um curso vocacional, numa escola pública,
com equivalência ao 6.º ano de escolaridade, pois que a sua relação com a
escola tinha sido até ao momento, muito complicada, com inúmeras retenções,
problemas no âmbito disciplinar e de absentismo. Um verdadeiro caso perdido…
A sua vida até aqui passou por múltiplas fugas do lar de
acolhimento e à escola, pois desde muito cedo procurou e foi tentada pelo lado
mais aliciante e, concomitantemente, mais perigoso da vida, que passava por
permanecer na companhia dos rapazes e das raparigas mais rebeldes, que
preferiam ir fumar tabaco e outras substâncias mais perigosas e desafiantes da
sua rebeldia em jardins, ou espaços abandonados e ermos da vila. Tudo menos ir
às aulas, isso era uma seca para Teresa!
Gostava muito de beber até cair para o lado, experimentou de tudo um pouco, mas preferia os "shot's" que rapidamente a faziam perder a noção da realidade e que a faziam viajar por mundos loucos, até mais uma aterragem num banco traseiro de um carro qualquer, cujo dono, nem sempre conhecia, mas isso também pouco lhe importava.
Claro que à bebida se misturavam, não raras vezes,
substâncias ilícitas, como fumar “charros” e tomar “speed’s”, produtos químicos
que aceleravam o seu ritmo cardíaco e lhe provocavam sensações de euforia, de
autoconfiança, de uma falsa sensação de liberdade, consubstanciada em viagens
mentais alucinantes, de curta, mas de intensa duração… mormente, nas primeiras
vezes em que são consumidas, depois é só dependência física e/ou psicológica. O
remédio será sempre aumentar a dose ou mudar de substância, no sentido, de
encontrar aquela droga mágica… a tal!
Muitas vezes, quando acordava num monte ermo ou numa valeta
rodoviária, encontrava-se de tal forma desorientada e perdida, que se punha a
apanhar boleia na margem de uma qualquer estrada. Teresa era uma menina muito
linda, com um corpo e um rosto deslumbrantes e que, embora se encontrasse quase
sempre desgrenhada e sem os cuidados de higiene mínimos, conseguia atrair a
atenção dos automobilistas e dos camionistas que passavam e que, pelo menos,
lhe rendiam sempre uma estrondosa buzinadela, ao que respondia mostrando o dedo
do meio das duas mãos.
Nestes casos, viajava quase sempre de forma automobilizada e era abusada física e sexualmente, muitas vezes em estados de inconsciência, depois de ter sido alvo de agressões físicas, ou do abuso de álcool e do consumo de substâncias psicotrópicas.
Deste modo, os dias passavam e a Teresa enganava as aulas e o
lar, com fugas recorrentes, revelando-se as duas instituições estatais
impotentes para reverter este estado de coisas. Quando desaparecia da escola,
comunicava-se ao lar, que avisava as autoridades policiais, o Tribunal de
Menores, a Segurança Social, para mais uma fuga da Teresa. No lar era natural a
polícia ser visita de final de tarde, para resolver mais um problema de
violência entre pares, de utentes para com as instalações, de utentes para com
os funcionários, ou tutores, e, devido a roubos e a outros pequenos delitos.
A sensação de impotência da Instituição de Acolhimento para
com os problemas de insubordinação e de indisciplina dos utentes era, por
demais, evidente. A recuperação da generalidade destes jovens tornava-se, em
muitos casos, uma “Missão Impossível”, uma utopia social. É que colocar pessoas
com muitos problemas pessoais e relacionais no mesmo espaço limitado, não pode
correr lá muito bem. Aliás, na escola, passa-se o mesmo, qual laboratório
social; quase sempre os casos mais complicados são agrupados em turmas “especiais” e depois é o caos, como não
poderia deixar de ser…
A Diretora de Turma que era a docente de Português encontrou uma forma criativa de fazer a caraterização sóciofamiliar dos seus alunos. Numa das aulas do inicio do ano solicitou aos alunos que descrevessem a sua vida familiar, a relação com os seus pais e familiares mais próximos, e, os problemas que os alunos tivessem consciência de afetar a sua relação com a escola.
Pois, mas para a Teresa foi mais uma chatice, como ela
costumava referir. Ela começou a interrogar-se, embora só em pensamentos
dispersos, sobre o conceito de família. A ideia muito remota que guardava dos
pais tinha apenas a ver com réstias de memória muito difusas de cenas de
violência gratuita, que guardava das inúmeras discussões dos seus pais, ambos
toxicodependentes e alcoólicos que viviam obcecados pelos vícios que os
consumiam. A vida deles passava por conseguirem mais uma dose, mais uma
bebedeira, tudo menos o horror da sobriedade, o choque com a realidade que os aterrorizava.
Será que poderia falar da sua experiência no lar de acolhimento, em que sentia que era mais um fardo existencial para todos, que as pessoas que lidavam com ela já não a suportavam, sentia-se sempre a mais, uma peça que emperrava o sistema montado, pelos problemas que ela, recorrentemente, tendia a criar.
Depois de alguns minutos de meditação atormentada, Teresa
decidiu não escrever nada. Primeiro porque dá menos trabalho, depois, porque
não há nada a dizer, ou a saber… E,
afinal, se a vida nos esvaziou, porque diabo teremos que falar disso, também
será uma valente seca. O facto de nada termos a dizer, também tem a ver com o
nosso contexto de vida e temos direito ao silêncio, por comodismo ou por
protesto, quanto a essa realidade inexorável!
Irónico será constatar que, o último reduto de defesa da
Teresa, foi sempre essa instituição que a Sociedade tanto despreza, a Escola
Pública, que fez sempre um grande esforço de inclusão, nunca desistindo deste e
de outros seres humanos. E embora o nosso mundo esteja prenhe de “Teresa’s”,
qualquer semelhança da personagem desta crónica com a realidade, trata-se de
pura coincidência…
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