ANABELA BORGES |
No pouco tempo
que tenho, nas corridas que vou dando pelos meios de informação e pelas redes
sociais, vejo afirmações impressionantemente lamentáveis (na minha opinião,
claro está) sobre a existência do Dia Internacional da Mulher. Vejo mulheres
letradas, com um papel mais ou menos activo, mais ou menos influenciável na
sociedade portuguesa, a dizerem que esta celebração é uma ideia machista. Ora e
eu, que não sou feminista nem machista, fico cheia de comichões e
pele-de-galinha. Deve-se a ocorrência – comichões e pele-de-galinha – ao facto
de não conseguir entender essas mentes aburguesadas que são contra a existência
de tal dia, como são contra tantos outros, só porque sim, e não se explicam
(não dizem o porquê de tal brilhante conclusivo-averbamento) – dizem sempre as
mesmas coisas: que o dia da mulher deve ser nos restantes 364 dias-blá-blá-blá;
que é um dia comercializado-blá-blá-blá.
Pois eu penso
que, tal como muitas outras datas e efemérides que se celebram, é uma data a
lembrar: lembrar para não esquecer.
Ou então, se assim é como dizeis, deixemos de celebrar tudo, já que tudo, ó
ímpios-ó-ímpias, vos mete fastio! Pois que falais do alto das vossas vidinhas
acomodadas, do alto das vossas cagadeiras, pois no fundo é disso que se trata e
estais-vos borrifando para as mulheres que não têm direitos, estais-vos perfeitamente
cagando para quem quer que seja que não rode em torno dos vossos torniquetados
umbigos. Foi interessante que, entre os comentários, na partilha de opiniões,
encontrei uma pessoa que, talvez tendo ficado com comichões e pele-de-galinha
como eu, propunha o seguinte: que se deixe de festejar, já agora, o dia de
aniversário; afinal é um dia profundamente discriminatório e os outros 364 dias
é que contam.
Não vou falar
dos problemas que tantas mulheres enfrentam por esse mundo fora – lembrar para
não esquecer – que o tema, nesta semana, já vai um pouco repetitivo e eu
própria já o expus noutros textos desta natureza.
Vou deixar-vos
com um excerto do meu conto MALOGRO, que aborda o tema do aborto, e só as
mulheres sabem – muitas, muitas – o que é sentirem-se sós, abandonadas e com
uma decisão importantíssima entre mãos, melhor dizendo, no ventre.
«
Malogro: um estorvo que se carrega sem préstimo, como uma mala cheia de coisas
inúteis. Uma bolha, em génese, mistura genética de fluidos – água, sangue –,
rica em substâncias essenciais, água-marinha de vida. Assim funciona a
Natureza, mas às vezes somos-lhe contrários.
É pecado evitar a vida?
Vamos reproduzir-nos até não cabermos mais no Universo, até à explosão de carne
e sangue, a formar um mundo grotesco suportado por braços, pernas, cabeças e
corações emaranhados, espalhados por todo o lado?
A anciã dizia, “É
pecado evitar que os filhos nasçam”. Transmitiu este princípio aos seus
dezanove filhos, para que estes seguissem esse caminho e os filhos deles e os
filhos desses também. Mas ninguém, nenhum deles seguiu os ensinamentos da velha
senhora. E ela, na sua convicção do saber antigo, “Os de agora não sabem o que
a vida custa. Julgam que a vida está difícil para se ter filhos, porque é-lhes
dado pensar que marido e mulher trabalhem para sustentar a casa, que tenham
dois carros e uma casa cheia de confortos, que os filhos estudem por longos
anos (longamente no tempo), porque hoje estuda-se ad aeternum. E não é certo que, terminando os estudos abandonem a
casa dos pais, a comida dos pais, o dinheiro dos pais. Nem é certo que venham a
casar-se e a ter filhos. Difícil foi parir dezanove filhos e não ter o que lhes
dar a comer, e deitá-los em sobrecapas de folhelhos, todos arrimados uns em
cima dos outros, rentes à soleira da porta. Os de agora têm tudo, nada lhes
falta. Os de agora julgam que a vida está difícil para se encaixarem nesse
coruchéu de vaidades atordoadas. E julgam que estará ainda mais difícil para os
que hão-de vir, porque não se sabe do que irão viver. Pois façam filhos, deixem
os filhos vir ao mundo, que uns sustentam-se aos outros”. E a anciã, detida
nesta equação simples, dirá sempre que os de agora têm a vida facilitada.
O ser humano nem sempre
é de fazer o que é conforme às boas naturezas. Passamos a vida a calcar flores,
arrancamos ervas daninhas e cortamos árvores, matamos insetos e esterilizamos
tudo à nossa volta. Passamos a vida a interromper o curso à Natureza.
Malogro foi a decisão.
Porque às vezes não sabemos o que pensamos que sabemos.
Malogro: enveredou por
um braço de rio mais estreito, antes que transbordassem aqueles fluidos de dor,
aquele fio teimoso de vida, a formar-se, a escorrer por dentro como a água de
uma goteira.
Malogro: naquele
desarranjo do corpo, uma sombra a despegar-se de outra sombra.»
[Excerto do conto MALOGRO, da
anthologia ATÉ SER PRIMAVERA, Anabela Borges, Editora Pastelaria Studios,
2013].
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