MIGUEL GOMES |
Havia muito pouco de tudo aquilo que a vida necessita, o pó a terra arada toda a falta de um candelabro que ilumina a noite e a ressuscita.
Entre muros a pedra e a ausência de uma face o nevoeiro que se enamora pela erva e o solo afoito de onde o que sou nasce. Paira no ar entre mim e a visão as aparas diluídas de uma madeira inquebrável, uma mão que quer afagar a entrada mais curta para o coração as turbulentas casualidades da amarrotada folha de papel.
Não poderei abraçar o Sol sem o aquecer, nem a Lua sem a fazer tremer. Um pouco como os caminhos que não posso percorrer por me estarem, sempre, a falhar os passos porque os meus pés ainda não chegaram ao local onde estou. Vou caminhando e recuando numa recursividade que me faz grafar por memórias nunca antes navegadas. Talvez seja isto a humanidade, o conhecer e desbravar, sinapsar e abrilhantar o dia com o sorriso possível, sem que se torne o sonho impossível. Uma das minhas memórias soltou-se, por aí, quando me sentei ao Sol e, inadvertidamente, fechei os olhos sem me lembrar que o Universo é tão fugaz e capaz de me surpreender, que se deixou habitar pela minusculidade do que sou. Choram-me palavras no colo, afio as letras e esgrimo-me na tentativa de embainhar-me no silêncio das frases nunca batalhadas.
A guerra é o profundo desconhecimento das palavras conjugadas com o olhar, imperceptíveis a quem se limita a ver, um pouco como o que sobra do horizonte depois de lhe termos gasto a cor na desenfreada corrida monocromática a que teimam designar como vida.
Tenho no abraço a mais longa viagem no tempo, da génese à pluralidade de uma calçada que se faz com as graníticas doses de labor. Obreiro, quem te faz a ti, que em mim quer primeiro?
Um dia, dois diasporalizados irão caber no peito não denso de quem se faz escorreito
Foi por entre as palavras que, numa tarde como esta, enquanto o vento atira os ciscos que o levarão a esfregar um olho, que vi surgir timidamente a ilusão de me desiludir. Daí para cá finquei-me e fiquei-me pelo que sou. Cada flor seu canteiro, cada bicho sua lura. O lugar de um deslocado é o momento em que a sua própria sombra se desprende, despede, e deixa pousar-se imiscuída entre sombras de raízes diferentes.
Conheço o caminho pelas curvas que traçou, as aparas, a grafite, os restos de suor de quem sangrou por uma estrada sem direcção. O sentido dá quem o quer, quem o sabe. A vida ilumina-se pendendo do tecto em forma de watts, what? A vida, do tecto, do céu, pouco interessa de onde chove, quando se vive é para todos.
Mais historias teve o dia, mas era apenas esta a que o ruído queria.
Vou guiando o silêncio, segurando-lhe os pulsos pequenos, içando e pousando o andar, longe de raízes falheiras e pedras à espera de serem falhadas, quando ele pára incito-o a continuar, não o deveria fazer, cortar assim a curiosidade sadia, mas tenho pressa, quero leva-lo rapidamente. Chego. Chegamos. O Sol ainda quente, eu ainda ente, sento-me no chão frio, encosto as costas à parede aquecida, sento-o no meu colo. O Sol. Eu. O silêncio.
Terra, eis o teu filho.
Filho, eis a tua Terra.
Vou ao encontro do ocaso,
sem caminho,
entre paz e guerra
acompanhado
de mim sozinho.
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