REGINA SARDOEIRA |
Quando analisa
o cogito cartesiano o autor de “O Erro de Descartes” escreve
o seguinte:
«Considerada
literalmente, a afirmação ilustra exactamente o oposto daquilo que creio ser
verdade acerca das origens da mente e acerca da relação entre a mente e o
corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os
verdadeiros substractos de existir.» (António Damásio, O Erro de Descartes,
p.254, Publicações Europa-América, 1995)
Adiante, Damásio
conclui:
«Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento.(…) Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.» (o.c. p.254)
Farei, em
primeiro lugar o comentário deste (aliás insignificante) excerto da obra.
A primeira
objecção faço-a à interpretação "literal" do penso, logo
existo cartesiano. De facto, é perigoso, filosoficamente falando, aludir
de uma forma literal e, ainda por cima, descontextualizada, a qualquer produto
da laboração do pensamento.
O cogito cartesiano
é um ponto de chegada o que significa, por essa mesma razão, o fim de
uma determinada forma de estar na filosofia e o princípio de uma nova era de
fundamentação do saber. Representa a superação da dúvida metódica pela certeza
indubitável do penso, mesmo quando esta palavra penso é aplicada à dúvida, ao erro e à incerteza. Representa a
assumpção intelectual da existência – aquele que pensa reconhece que existe – e
um percurso mental crítico de repúdio pela sapiência escolástica então
instituído, alicerçado no demonstração por redução ao absurdo. Representa
a atitude artificial, logo metódica, do filósofo, que se obriga a duvidar
para extrair do nada (em termos gnoseológicos) a certeza absoluta.
Não tenho o
mínimo rebuço em afirmar que a este nível Descartes encontrou, no cogito, ergo sum, uma verdade
inatacável seja por que ângulo for.
Ele próprio,
no Discurso do Método, algumas linhas depois do excerto que Damásio cita
(p.255) experimenta a validade da sua verdade primeira, escrevendo:
«Depois disto considerei em geral o que é requerido a uma proposição para ser verdadeira e certa. Uma vez que acabara de encontrar uma que sabia ser tal, pensava também dever saber em que consistia esta certeza. E tendo notado que na afirmação: eu penso, logo existo, não há absolutamente nada a garantir-me que digo a verdade, senão que vejo muito claramente que para pensar é preciso existir, julguei poder tomar como regra geral que as coisas que nós concebemos muito claramente e muito distintamente são todas verdadeiras.» (…) René Descartes, O Discurso do Método, Publicações Europa-América, pp.52/53
Ora, o que deste
excerto resulta claramente é a inversão do penso, logo existo que pode traduzir-se da seguinte
maneira: na ordem dos pensamentos, quando Descartes no artifício voluntário da
dúvida deixou de lado a existência e o seu valor, colocando-as por assim dizer,
suspensas, entre parênteses (processo filosófico que mais tarde
Husserl, o fenomenologista, vai designar como epoché) para desmontar o processo gnoseológico, no que diz respeito
à segurança das suas fontes, e encontrar o critério de evidência, o eu penso surgiu-lhe como a
primeira constatação, visto estar por essência presente no acto da dúvida
(duvidar é pensar), surgindo o eu existo
em segundo lugar e como sua consequência lógica. Mas, transitando para o
plano da existência, Descartes viu, imediata e "claramente" que para
pensar é preciso existir, o que nos permite, cartesianamente falando,
reescrever o cogito da seguinte
maneira: Existo, logo penso.
Portanto, a análise simples, ainda que não linear, do texto de Descartes,
devidamente enquadrada, torna despropositada a correcção de Damásio ao alcance
da verdade filosófica de Descartes, na medida em que, ele próprio, seguindo a
sua linha de pensamento, havia desde logo invertido a ordem gnoseológica
do cogito, colocando a existência
como condição ontológica (não lógica) do pensamento.
O que é
discutível em Descartes, ainda que, em filosofia não seja adequado chamar
de "erro" a uma controvérsia (e eis aqui o "erro" de
Damásio) acaba por ser exactamente a transposição do plano lógico para o
ontológico, o que não é cientifica ou filosoficamente legítimo. Tal é a
convicção de Kant cuja metafísica se alicerça na desmontagem das transposições
de linha cartesiana e na ilusão criada pelo carácter dogmático do seu
racionalismo. Portanto, não foi este o "erro" de Descartes visto que
a análise rápida de alguns parágrafos de O Discurso do Método não
deixa margem a dúvidas sobre o valor inicial do cogito, a saber, o ponto de chegada após a dúvida, o ponto de
partida para novas certezas.
O descalabro
filosófico do pensamento cartesiano radica nos caminhos seguidos após ter
encontrado o cogito, nomeadamente a
forma simplista com que, partindo da evidência subjectiva do ser pensante,
"demonstra" a existência de Deus e do Mundo. Só que essa é a face de
outro problema distinto daquele que ressalta das já citadas cinco páginas de
Damásio sobre o presumível erro de Descartes.
Ouçamos então o
próprio Damásio:
«É este o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, por um lado, e a substância mental, indivisível, sem dimensões e intangível.»(…) o.c, p.255
O dualismo
cartesiano! Eis o erro apontado e – parece!- descoberto no século XX por
António Damásio.
Sou obrigada a
confessar o meu espanto perante um tão impressionante atestado de ignorância
passado por António Damásio a toda a comunidade filosófica desde há três
séculos. E, reforço, trata-se de um espanto acrescido na medida em que, à época
em que “O Erro de Descartes” foi escrito e publicado, qualquer professor de
filosofia do ensino secundário desmontava esse suposto "erro" à luz
do próprio avanço científico e filosófico na obra de Descartes O “Discurso
do Método” era de leitura obrigatória para todos os estudantes do ensino
secundário – pelo que qualquer pessoa minimamente culta não poderá ignorar que
a descoberta de Damásio é, afinal, uma pseudo-descoberta!
O que faz então
Damásio nas poucas páginas do tornado célebre “Erro de Descartes”? Culpa a
influência do pensador francês do século XVII pelo vício dualista do nosso
tempo o qual, na área da medicina – quer na sua prática especializada e
especializante quer no âmbito da investigação – se tem pautado por essa mesma
separação, por essa quase "esquizofrenia", tratando a patologia
humana por secções e vendo o homem como uma estrutura desarticulada, uma
máquina repleta de peças e botões cada uma e cada um a carecer de tratamento
específico e estanque.
Culpa do erro de
Descartes? Como poderemos aceitar esta culpabilidade três séculos depois de tal
"erro" ter sido cometido, no decurso dos quais tantos e tão insignes
filósofos tocaram a tecla da totalidade antropológica?
É provável que a
explicação seja a seguinte: tal como no tempo de Descartes o dualismo (e
respectiva elevação da res cogitans à
categoria de essência do homem servia de «hábil propósito de aliviar as
pressões religiosas que Descartes podia sofrer» (o.c, p.254) também hoje a
crescente especialização e correlativa compartimentação do saber e das práticas
sociais pode ser a camuflagem de interesses inconfessáveis. Não lhes chamaria
já «pressões religiosas» (a Inquisição esfumou-se, enquanto tribunal pelo
menos, em permissão de fanatismos e liberdade quase absoluta
na proliferação de doutrinas os mais diversos) mas interesses de
outro quilate, onde o político-económico se agiganta, soberano.
O livro de
António Damásio, sendo notável enquanto investigação sobre Emoção, Razão
e Cérebro Humano (é este, afinal, o seu verdadeiro título, se bem que pouca
gente o identifique como tal, pois aparece em letras menores por debaixo de “O
Erro de Descartes”) peca em absoluto quando faz uma incursão superficial e
errónea sobre o suposto erro de Descartes, ao qual dedica cinco páginas e das
quais faz derivar a pompa escandalosa do nome da obra.
Porém, se o
mérito do livro de António Damásio for, não provar o "erro" de
Descartes ou seja de quem for, mas apear a mente do dogmatismo e dos
lugares-comuns, da intolerância e da ideia feita de que o espírito paira, solto
por não sei que esferas ideais desarreigado do corpo, tido como vil mas apesar
de tudo sua fonte e alimento, se esta obra puder marcar para a humanidade
o início de uma nova era no campo dos valores, reconduzindo o homem à sua
verdadeira dimensão, então encontrará justificação a pompa ilusória e
mercantilista do título e a insignificância das cinco páginas com que o
legitima.
(Texto datado de 12 de Agosto de 1995 (agora revisto e alterado) publicado nesse mesmo mês no semanário Independente.)
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