REGINA SARDOEIRA |
As “celebridades”, seja de que área forem, não são representativas de um país, de um povo, de uma comunidade: podem honrá-los e, eventualmente, trazer-lhes visibilidade além-fronteiras, mas não os resumem, nem podem dispensar os “anónimos” de realizarem a sua missão humana.
Vejamos o caso de Amarante. À saciedade, usa-se e abusa-se de certos nomes, ou monumentos ou paisagens, para lhe caucionar a grandeza. Teixeira de Pascoaes ou Amadeo de Souza-Cardoso, a Igreja e a Ponte, o Rio Tâmega e a envolvência do Marão e outros arquétipos que andam por aí a crismar estabelecimentos e coletividades, a encher a boca e a render trunfos a muitos que tão pouco verdadeiramente os honram, enquanto realidades tangíveis, são, indubitavelmente, valores que representam a identidade do amarantino, enquanto tal – mas em abstrato. Quantos leram a obra de Pascoaes ou conhecem, dos Museus, as telas de Amadeo? Quantos decifraram as origens da Igreja e da Ponte, ou sentiram, de facto, o papel do Rio e do Marão na idiossincrasia do amarantino? E, ainda que conheçam, mesmo que se deslumbrem quotidianamente com a paisagem ou com os vultos que lograram atingir a universalidade e granjear um lugar na história, que importância terão esse conhecimento e esse deslumbramento se, apegados à tradição de um passado rico, nada fizerem hoje para lhes dar continuidade?
Estendamos esta análise ao país, como um todo.
Temos uma história de quase 900 anos e portanto uma identidade nacional e uma língua, um acervo de monumentos e de factos históricos, uma galeria de vultos, cuja qualidade e quantidade são representativas da nossa importância, como povo.
Observemos, contudo, a precariedade social, cultural e humanística do nosso tempo e da nossa sociedade, neste famigerado século XXI, observemo-los e às suas figuras, às celebridades que nos vão retirando do anonimato e de um certo vazio que a própria presença no mapa não preenche.
Será que nos satisfaz saber que a figura mais célebre de Portugal, aquele que leva o nome do nosso país ao mundo é um futebolista de 30 anos? Ou que um treinador de futebol, internacionalizado, é galardoado como sendo o melhor do mundo? Somos os melhores do mundo porque um futebolista e um treinador de futebol obtiveram esse estatuto?
Bem sei que temos outros premiados. Mas quem se identifica com José Saramago, o Nobel da Literatura? Ou com Álvaro Siza Vieira, o arquiteto que vem marcando a história da arquitetura mundial? Ou…?
Não, não serei exaustiva, não é de “celebridades” que quero falar pois, e volto ao início: não serão elas a salvar-nos do vazio em que, coletiva e individualmente, mergulhamos.
Regressemos a Amarante. Quando me falam de Pascoaes ou de Agustina Bessa- Luís ou de Amadeo, ou da Casa da Calçada e do Restaurante Largo do Paço, premiados e conhecidos no país e além-fronteiras, eu indigno-me e questiono: e então eu? E os meus vizinhos da rua? E os outros que vivem do lado de lá do rio, em Santa Luzia ou, noutras coordenadas, a caminho do Marão, em Vila Chã ou Canadelo? Ninguém, hoje, vale nada, nesta terra de poetas, de artistas, neste paraíso plantado à beira-rio e sobrepujado pela grandiosidade da montanha?
E respondo a mim mesma: decerto valem, ou poderiam valer, se acaso não se houvessem demitido de engrandecer a terra em que vivem.
O nosso problema, enquanto povo, enquanto habitantes de uma certa região deste país, que nos dá identificação e nos confere peculiaridades, só nossas, é a absoluta e profunda demissão, relativamente à necessidade premente de agir. Estamos demasiado apáticos, ainda esperamos que o governo, os autarcas, e (quem sabe?) os padres, realizem, por nós e para nós, aquilo que nos falta. Ainda esperamos que outro Pascoaes ou outro Amadeo nos relancem para o reconhecimento nacional ou internacional e ponham a nossa terra no mapa; estamos à espera de outro Saramago ou de alguns Sizas Vieira para fazerem percutir os sinos do nosso génio.
Ou será que nos chega saber que um certo português de 30 anos, perito nos pontapés e nos truques de campo, muito sagaz, no que ao aproveitamento da imagem e do talento diz respeito, para daí tirar proventos individuais, que logrou, com sentido de oportunidade, alargar para aqui e para além, de modo a que pareça um exemplo a seguir, conseguiu levar o nome de Portugal a todo o lado?
Quando vou à descoberta de Portugal e do seu valor, só vejo aplaudir esse génio, nem sei muito bem de quê! Acaso inventou um novo modo de jogar futebol? Foi tão talentoso que conseguiu, pelo seu poder, reduzir ou ampliar o tamanho da equipa ou o tempo de uma partida, com vantagens inequívocas para o jogo/espetáculo? Inventou novas regras, pelas quais o futebol ganharia uma maior dinâmica, sem deixar de ser futebol? É que um génio é isso mesmo: alguém que, pelo seu fulgor intelectual ou físico, consegue melhorar ou tornar mais profícua a arte ou a técnica em que é perito. Saramago fez isso, com a escrita. E, por mais incompreendido que tenha sido até hoje, nas vozes de uma certa mentalidade comezinha que não consegue lobrigar a grandeza, quem se lhe seguiu, nas áreas da literatura, tirou proveito do novo género que o escritor, efetivamente, criou.
Porém, não é desse futebolista laureado e premiado, com direito a estátua e a museu, nem sequer do nosso único Nobel da Literatura que quero falar. Cada um, a seu modo, já são celebridades e elas – repito – não me interessam, porque nada me dão – a mim e ao meu país. Apenas eu e o meu vizinho, e aquele outro que nem sequer conheço e que vive escondido numa serra ou num vale, e o outro, lá no fundo de Portugal ou a meio, todos nós, entretidos, alienados ou embrutecidos, pelo poder de um sistema que apenas subsiste nas linhas desse entretenimento, alienação ou embrutecimento, apenas nós, quando despertarmos, poderemos levantar-nos e levantar o país.
Esta receita – que o não é, efetivamente – constitui-se no único meio de salvarmos a humanidade, no seu todo, sejamos portugueses ou espanhóis, noruegueses ou americanos. Não foi Portugal, ou Amarante que caíram no descalabro, enquanto os restantes povos ou comunidades vicejam: o homem, enquanto tal, degenerou e pior do que isso – não conhece ou reconhece o profundo abismo em que caiu.
São duas as atitudes que essencialmente nos desonram, enquanto únicos seres racionais que cremos ser. Por um lado, deixamo-nos estar à sombra de gloríolas passadas ou presentes e puxamos pelos galões sempre que os citamos, tal como se eles nos representassem; por outro, e acedendo à cultura global e à facilidade extrema de comunicar, difundindo opiniões e dando sentenças, consideramos tudo saber.
Nunca, como agora, proliferaram, de um modo tão estrondoso, os comentadores de tudo, os opinadores e os fazedores de opinião, os literatos, os escreventes, os artistas, os modelos e candidatos a ídolos, os cantores, imitadores, palhaços e humoristas, as vedetas, as beldades de ambos os sexos…e é uma fila interminável e monstruosa de génios de coisa nenhuma, de talentos de pacotilha, de afirmadores e negadores disto e mais daquilo. Entretanto, o que há para fazer, arruma-se para um canto, o que verdadeiramente definirá este e aquele que salta para a arena a exibir uma ciência superficial, copiada e partilhada até à exaustão, permanece esquecido: porque triunfar é ser visto e ouvido, nem que seja na mais estulta das assembleias!
Se existimos no mundo, na sociedade, no tempo e se, à nossa volta, vemos as condições de vida a desmoronarem-se, não será cada um de nós o responsável? Não terá chegado o tempo de, individualmente, olharmos o descalabro das nossas vidazinhas e a futilidade das nossas tarefas, e mesmo do nosso lazer, e começarmos a fazer o que é preciso?
Eu, por exemplo, sou professora e vejo, quotidianamente, o logro da minha profissão. Vejo isso, agora, não a via assim há alguns anos atrás, talvez cinco, talvez dez. Quando me dei conta, desatei a batalhar para que as aulas fossem o que já haviam sido, para que as matérias servissem à formação dos jovens e ficassem como base dos tempos que hão-de vir. Porém, os outros que, a terem feito comigo um coro ensurdecedor, teriam aberto os ouvidos tapados do sistema que assim quer formatar consciências, adaptarem-se; e eu perdi. Derrotada, sirvo um senhor a que não dou o mínimo crédito e por isso me sinto a fraude, tanto mais onerosa para a minha consciência quanto conheço as estratégias capazes de me reabilitarem e à minha função. Também eu, agora ocupada a escrever esta crónica, me creio escritora; e contudo, não posso publicar os meus livros e honrá-los como deve ser, pois a literatura tornou-se uma indústria e o literato tem que ser comerciante.
Isto sou eu. E os outros todos? O meu vizinho, aquele senhor que cisma lá longe, perto da serra, os outros todos que se encaminham em fileiras para empregos que detestam, privados do sonho e por isso do futuro, e os jovens que se amontoam em jogos alienantes ou desfilam em poses provocatórias e todos de costas voltadas, uns, achando que o mundo vai acabar, outros, supondo que a vida nunca mais começará…que podem eles fazer por si mesmos e logo pelo todo?
Ontem mesmo ouvi um comentário político do seguinte teor: “ O que aconteceu na Grécia, em que o povo elegeu um governo contra a corrente, e o trabalho que os respetivos políticos agora fazem para cumprir o que prometeram, prova que, afinal, a democracia funciona.” Sim, é verdade, a democracia funciona, ou funcionou ali, naquele caso concreto. Mas agora, deixemo-los sozinhos a arremeter contra os interesses arreigados dos que não querem ouvir falar da mudança, deixemo-nos ficar, céticos e a abanar a cabeça, do alto (ou do baixio) do nosso conformismo estulto, continuemos a vergar o cerviz ao poder estabelecido, como se não houvesse mais nada e (pior ainda!) como se não fossemos ninguém… e daqui a alguns meses diremos, com o sarcasmo doentio a que nos habituámos: “eu não dizia?!”
Continuemos ufanos das nossas pequenas e grandes celebridades disto ou daquilo, passadas, presentes ou mesmo futuras; continuemos a dar vivas a pequenos reis de coroas de latão e a conferir-lhes o direito de moldarem as nossas vidas; continuemos a achar que não somos nada, nem ninguém para mudar seja o que for e que tem que vir o D. Sebastião (ou o Messias) para nos levarem até à nossa redenção; continuemos sentados à frente de monitores idiotas, feitos outros tantos idiotas, a comentar a última estupidez ou escândalo ou embuste, a exibir os nossos feitos e a atirar os nossos “gostos” para tudo quanto é lado; vegetemos, nesta incúria de viver, arrebanhados para míseros espetáculos de míseros atores, ansiando ser, também nós, protagonistas. Um dia, o céu vai cair sobre as nossas cabeças ou virá um dilúvio ou uma tempestade de fogo ou a guerra global ou tudo junto. E a humanidade esvair-se-á, sem pompa nem circunstância, porque nenhum ser racional percebeu que apenas ele, sozinho, extremando a sua potência, para lá dos limites que ele deixou que lhe fixassem, era capaz de mudar o mundo, mudando-se apenas a si próprio.
*(hecatombe, ἑκατόμβη=do grego: sacrifício de
cem touros)
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