“(…) Pode pensar-se que esta retirada da Teoria dos Jogos é motivada por alguma agenda radical de esquerda. Não é assim. A maior influência aqui é Immanuel Kant, filósofo alemão que nos ensinou que a racionalidade e a liberdade escapam do império da conveniência, que devemos fazer o que está certo.Como é que sabemos que a nossa agenda política modesta, que constitui a nossa linha vermelha, está certa, nos termos de Kant? Sabemos, ao olhar para os olhos de quem tem fome nas ruas das nossas cidades ou contemplando a nossa classe média estressado, ou considerando os interesses das pessoas que trabalham duramente em cada vila e cidade dentro de nossa união monetária europeia. Afinal, a Europa só vai recuperar a sua alma quando recuperar a confiança das pessoas, colocando os seus interesses no centro do palco.”
Yanis Varoufakis (Γιάνης Βαρουφάκης), New York Times
REGINA SARDOEIRA |
Fiquei rendida ao sentido destas palavras e não apenas ao sentido, enquanto abstração, mas ao rigor do conteúdo e à novidade que representa no discurso político atual. Senti-me verdadeiramente justificada nas minhas crenças e nos planos que tenho vindo a traçar relativamente à solução dos problemas do Homem, pois de há muito preconizo e afirmo que bastará seguir o imperativo categórico kantiano, à risca, para que a sociedade encontre, de imediato, o seu rumo e nunca mais haja a sombra de um conflito.
É claro que para chegar a semelhante conclusão teórica – esta, que acabo de enunciar: “bastará seguir o imperativo categórico kantiano à risca para que a sociedade encontre, de imediato, o seu rumo e nunca mais haja a sombra de um conflito.” – é necessário conhecer o pensamento de Kant; e, sendo este filósofo um dos mais difíceis da história do pensamento, dir-se-á que tal não é acessível à maioria das pessoas e portanto o preceito não terá qualquer valor prático.
Eu, pelo contrário, reitero que, uma vez entendido o projeto deste filósofo alemão do século XVIII, tudo se encaixa tão harmoniosamente que qualquer cidadão de cultura média ou mesmo abaixo da média será capaz de o assimilar e logo a seguir estará disposto a por em prática o que assimilou.
Varoufakis diz, invocando Kant, que o nosso dever “é fazer o que está certo”. Haverá sentença mais clara e luminosa do que esta?
À pergunta: o que devo fazer? Dá-se a instantânea resposta: Faz o teu dever. E o que é o dever? O respeito pela lei. E o que é a lei? Aquilo que a tua vontade elegeu como norma de conduta universal. E como sei que é universal? Consulta a tua razão e tenta descobrir se podes querer que a norma da tua ação seja a norma de ação de todos.
Vejamos exemplos. Devo mentir? Não. Porquê? Porque não posso querer que a mentira seja instituída como regra de comportamento universal. Devo roubar? Não, pela mesma e simples razão.
Se mentir ou roubar se tornassem normas de conduta universal, teríamos que admitir que nos mentissem e que nos roubassem e não poderíamos queixar-nos porque, voluntariamente, achamos ter esse direito e, ao achá-lo, conferimo-lo a toda a humanidade.
Podemos multiplicar os exemplos. Devemos ser egoístas? Não, porque ao sê-lo e de acordo com a regra da universalidade, abolimos qualquer gesto solidário; devemos suicidar-nos? Não, porque ao realizar tal ato, universalizando-o, estamos a condenar a vida, no seu todo, enquanto condição humana por excelência.
Pelo contrário, posso querer fazer o bem, ajudar os outros, ser justo, porque nenhuma destas ações me prejudica ou prejudica os meus semelhantes e logo é perfeitamente universalizável, de acordo com a minha vontade racional.
E então o imperativo categórico kantiano, aquele que ordena: “Age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua ação se converta em norma de conduta universal” ao nortear a conduta de todos e de cada um, eliminaria truques e malabarismos, conveniências e jogos, ardis e subterfúgios. Consultar a nossa consciência, onde imperam uma razão legisladora e uma vontade boa, a primeira, capaz de distinguir o bem do mal e a segunda capaz de preferir o bem ao mal, é o único critério e a garantia de que todos farão, doravante o que está certo.
Mas porque são estes preceitos kantianos designados como imperativos ou mandamentos? Exatamente na medida em que, na base de todo o ser humano há uma componente instintiva, movida por inclinações, sujeita ao vício e àquilo a que o filósofo chamou de animalidade. Sobre essa animalidade, que subjaz à nossa condição, pesam o determinismo cego da natureza, os impulsos irracionais da nossa constituição dupla: somos, a um tempo, animais, porque não escapamos ainda aos ditames dos nossos instintos; mas ascendemos, pela racionalidade, ao discernimento de uma vontade que sabe (porque essa é a sua matriz) distinguir o bem do mal e oprimir os mobiles da animalidade a favor de ações esclarecidas e logo livres. A animalidade subjuga-nos à tirania da necessidade; a personalidade, que é a razão assumida, enquanto instrumento prático, liberta-nos para o rumo certo que, uma vez estabelecido por nós, como regra para nós, seria absurdo não seguir.
Ora, em política, de há muito que o interesse a inclinação individuais se sobrepuseram ao respeito pelo bem comum e à linha de ação regida pela universalidade. E o político não é aquele que serve os outros e a si próprio enquanto elemento do todo, mas sim aquele que se serve de todos para promover o seu interesse privado.
A política não é, contudo, inseparável da economia e das finanças, porque vivemos num tempo em que estes dois segmentos da sociedade são a condição do funcionamento do todo. No entanto, os interesses económicos e financeiros estabeleceram um conluio desonesto com os atores políticos; e eis que, ignorando o todo, esta cúpula social interage, formando um universo à parte e destruindo a harmonia coletiva pela criação de desequilíbrios. Logo, uma parte do todo – os políticos, os impérios económicos e o mundo das finanças – assumiu preponderância, subjugando tudo o resto, a enorme massa das multidões anónimas de todos os países do mundo, e condenando-os a uma miséria coletiva sem precedentes.
Por esta razão, ler um texto de um político a invocar o imperativo categórico de Kant, perceber que, quem assim o faz é o ministro das finanças de um país que escolheu, enquanto povo, enquanto todo, sair da submissão ao império político, económico e financeiro de uma parte, perceber que um homem ousou enfrentar de peito aberto e com otimismo um ninho onde se acoitam os usurpadores dos benefícios que são de todos, é uma rajada de ar revigorante no pântano estagnado e sombrio em que nos temos movimentado.
De facto, Varoufakis está a dizer a essa horda de vilões que têm comandado e quer continuar a comandar as existências de um povo que escolheu para governar-se, sendo governado, exatamente o oposto, é que tomem para si mesmos o preceito kantiano e façam, desde já, eles também, o que está certo e que é simplesmente, olhar o povo nos olhos, face a face, frontalmente, e captar o abismo das suas carências. E depois perguntar: será que eu, governante deste mundo, agente financeiro desta sociedade, detentor dos valores económicos que usurpei a todos, fazendo-os só meus, posso querer que estas ações que pratico sejam norma de conduta universal? Imediatamente, todos esses perceberão que a resposta é negativa, que nenhum deles quer ser usurpado, oprimido, espoliado. E, nessa medida, fazer o que está certo é libertar os bens acumulados por minorias, os benefícios obtidos por corrupções e negócios ilícitos, as benesses opulentas que se autoatribuíram, usando um poder que o todo dos povos não legitimou em nenhum momento, e distribuir a todos o que é de todos.
Faz algum sentido pensarmos que há países pobres e países ricos e que, numa união de todos, em que – segundo a lógica de qualquer verdadeira união – os ricos não libertem a sua riqueza, gratuitamente para que os pobres deixem de o ser e se crie a igualdade? E que, em acréscimo, quando soltam alguma dessa riqueza, em prol do mais pobre, o façam como um negócio, em que se transformam em instrumentos da usura com que cavam ainda mais o fosso já existente? E ainda que venham exercer vigilância e coação sobre aqueles a quem ajudaram, ditando as regras segundo as quais eles devem viver, uma vez que são pobres e devem parte do seu sustento aos parceiros da união?
Imaginem que um amigo vos empresta dinheiro num momento de dificuldade; e imaginem depois que esse amigo vos obriga a pagar juros sobre a importância que vos emprestou e que, não contente com isso, vem instalar-se em vossa casa para ver se viveis de acordo com o estilo que ele acha que deve ser o vosso, uma vez que estais a viver com o dinheiro que vos emprestou! Chamariam, doravante, a esta pessoa, de “amigo”? Permitiriam que ele invadisse a vossa privacidade, para vos impor austeridade nos gastos e vos reduzir à escravidão? Não prefeririam nunca ter solicitado a sua ajuda e de bom grado o expulsariam da vossa casa, rompendo a união, e recomeçando do zero a reconstrução da vossa independência?
Ora, o que é válido ao nível particular, na nossa comum peculiaridade de viventes no mundo, em que constituímos famílias e grupos de amigos, também deve sê-lo no plano mais amplo dos países que estabelecem uniões para gerar força acrescida e para serem o apoio mútuo e recíproco, sempre que for necessário. Uma união no seio da qual uns ordenam e outros obedecem, uns são senhores e outros súbditos, uns emprestam para colher benefícios daqueles a quem emprestam, é-o somente num sentido: naquele em que a usurpação da fraqueza e a respetiva subserviência de quem se sente inferiorizado serve os interesses daqueles que são mais ricos e querem manter a riqueza e fazê-la crescer. Esta é a lei do capitalismo que, em todos os tempos e lugares, só chegou a sê-lo na justa medida em que a usurpação dos pobres pelos ricos, o uso do poder de trabalho de uns para criar a mais-valia que possibilita o acréscimo indefinido do capital, arrastando consigo, na teia dos interesses, os políticos, donos do poder legitimado em eleições mas, eles próprios perfeitamente cônscios de que, servindo o económico se servem a si mesmos, se foi constituindo a lei da existência humana, de forma praticamente generalizada.
Apenas por isso, a posição de Varoufakis e a referência ao imperativo categórico de Kant provocam reações cínicas ou levam a um encolher de ombros desdenhoso por parte dos que se encontram confortavelmente aninhados no regaço da corrupção legitimada e da usura suportada por leis que eles estabeleceram – apenas para si mesmos. Porque se acaso não se supusessem subtraídos à lei da universalidade, que faz pender sobre todos, por inerência da própria racionalidade, o que a parte estabelece no santuário da sua boa vontade, cedo se apressariam a querer outra condição, outra categoria humana. Nesse momento, o projeto grego que Varoufakis tem protagonizado, encontrará o eco que não pode, de momento, fazer-se ouvir, no coro esfusiante de todos... que seria necessário. O povo grego, com o seu grito coletivo que deu capacidade executiva a quem prometeu tratar dos seus assuntos, representa uma lição para todos os outros, povo como eles são, espoliados e vítimas da usura como eles têm sido.
Possa Kant, esse filósofo das luzes, glória do povo alemão, inspirar os seus compatriotas deste tempo, Kant que foi (intencionalmente, creio eu) citado por um grego para abrir os ouvidos de uma geração esquecida do seu mais genuíno filósofo! Varoufakis poderia ter citado Platão ou Aristóteles, pois nas suas teorias politicas existem preceitos, também eles capazes de mudar o mundo; mas deu aos alemães a provar do seu próprio remédio e fê-lo, não para mostrar erudição, mas com o propósito de lhes lembrar a matéria humana de que também são feitos. Eles (os alemães) e todos os outros.
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