terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

DISCURSO AFÁSICO

REGINA SARDOEIRA
Roland Barthes escreveu algures (julgo que na obra Mitologias) que existe uma afasia natural no homem, ou seja que em princípio nada há para dizer quando nos defrontamos com uma página em branco. E eis o pavor que muitas vezes acomete todo aquele que precisa de escrever (ou de falar) e nada lhe sai de uma espécie de buraco onde os signos flutuam, dispersos e sem nenhuma coesão à vista.

Hoje sinto-me no seio desse estado de afasia, quero escrever e tarda a estrutura frásica e as próprias palavras como que se penduram, aqui e além, destituídas do seu significado, caindo aos pedaços, uma letra e depois outra…Desisto de procurar o sentido e quebro (já quebrei) a alvura cintilante da página em branco deixando correr os dedos no fluxo aleatório das teclas, sem curar de um tema, sem me ocupar de um nexo, sem aquela urgência que por vezes me acomete de apor racionalidade aos argumentos que produzo e com os quais tento expor e provar uma certa tese.

Não, hoje não haverá nenhuma tese. previamente engendrada, hoje o que sair da ponta dos meus dedos terá o automatismo do pensamento fluido – que sempre acontece sem dele tomarmos consciência

De facto não quero estar consciente, pretendo amodorrar-me numa meia sonolência vizinha do delírio e permitir a tudo o que jaz ignoto, até para mim mesma, se desvele perante os leitores. Eles próprios, esses leitores que nem sei quem são ou se existem, poderão largar as minhas frases vagabundas, logo à partida, ou então talvez corram a tentar perceber o que queria dizer Roland Barthes, quando falou em afasia natural do homem ou quem foi Roland Barthes e que livro é esse, tão sugestivamente chamado Mitologias.

Eu fiz o gesto de levantar-me e ir à estante procurar o livro, deve estar ali a um metro deste lugar onde escrevo, mas desisti: não irei abrigar-me à sombra de uma frase, nem especular o sentido de uma ideia, nem verificar se a sentença de Barthes está mesmo em Mitologias ou noutra obra qualquer.

Afinal, percebi há muito que quando sabemos seja o que for e nos lembramos desse saber, pouco importa que nos tenha sido ensinado por este ou por aquele, já que passou para nós e daí em diante pertence-nos, como componente intrínseca do nosso acervo cultural privado. 

Roland Barthes disse que há uma afasia natural no homem? Falou da angústia do escritor perante uma página em branco? A memória diz-me que sim, que foi ele que assim exprimiu uma possível caraterística do homem, que pensa e comunica; e eu, na altura em que isso me foi soprado. encontrei-lhe uma adesão interna de que ainda não em libertei. Logo a frase de Barthes passou a pertencer-me e também a sua interpretação, independentemente do que terá especulado este filósofo da linguagem que, apesar de tudo, citei. Mas citei-o, sem verdadeiramente o citar, apenas aludi então (e corrijo-me); e pouco me importa que venham os eruditos todos deste mundo vociferar que não foi em Mitologias que Roland Barthes fez semelhante alusão ou que, quando referiu a caraterística afásica do homem, não queria dizer o que, afinal, eu quero que ele tenha querido dizer. E é assim. 

Nós, humanos, falamos muito, eu diria que falamos demais, e ainda que a esmagadora maioria das palavras que proferimos é inútil, pois pode significar outra coisa muito diferente do que afinal dissemos e ser interpretada de um modo que em nada corresponde ao que queríamos dizer. E então, o termo afasia de Barthes pode significar excesso palavroso, isso mesmo, excesso e não carência, pois quando todos vociferam ao mesmo tempo o resultado é um borrão sonoro sem qualquer réstia de sentido.

Afásicos: eis o que somos naturalmente e eu acredito. As palavras são subterfúgios com que tapamos a nossa obscuridade e o nosso nada ter para dizer e ainda a nossa ignorância acerca de tudo o que poderá existir para sabermos. As palavras são os ornamentos da nossa vaidade de falantes, as joias com que vamos ataviando a nossa pobreza racional, o estímulo com que avançamos no tempo, enredados em vocábulos que, por muito que intentemos procurar, jamais saberemos de onde vieram e para onde irão, a armadura da nossa fragilidade de seres demasiado abertos ao despojamento e à ausência.

Mas mesmo sendo afásicos e mesmo desdobrando pelas plateias do mundo mananciais verbosos, ora eruditos ora vãos, o certo é que vamos transformando o mundo com esses rudimentos de discurso, feitas armas de arremesso.

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