ANABELA BORGES E O MARIDO |
O AMOR É UM CASO
SÉRIO é o título de um conto que eu publiquei há cerca de um ano, mais
propriamente em Janeiro de 2014.
Retornei ao
título porque é o que venho sempre pensando ao longo da vida sobre o amor – um
caso sério –, em todas as suas formas, exercícios e feitios.
O que é isso:
AMOR? O que é isso: AMAR?
Os seres apaixonados gostam de
dar-se assim uns aos outros os corações. Dão o coração como quem dá flores, ou
safanões, ou uma bolacha. E nem sempre é fácil sobreviver com o coração de
outra pessoa. Ao assumires essa responsabilidade, tens de dizer adeus ao teu
velho coração, que tem os seus hábitos, os seus vícios, a sua forma de estar, e
despedes-te dele, como se o fosses assim a enterrar – a fazer-lhe o funeral –,
para te habituares às exigências e necessidades do teu novo coração, que é o
que agora te anima a vida. É tão estranho como fazer um transplante em fim de
linha, como se o teu coração ficasse doente e dependesses, agora, do outro para
sobreviveres: em milhões de batimentos; em válvulas que não podem prender; num
sangue que tem de fluir, livre, pelas superfícies, sem coagular; sem bloqueios;
numa bomba que não pode ter fugas.
A tua vida depende totalmente do
funcionamento dessa bomba. A bomba do teu velho coração teve fugas, e sofreu os
danos colaterais, que são, sem o saberes, danos incalculáveis: os batimentos
tornaram-se tão fortes, que seria de se dizer impossível a bomba aguentar
tamanhas rotações para funcionar normalmente; as
válvulas – essas dobras membranosas que cerram os orifícios entre as aurículas
e os ventrículos para impedir o sangue de refluir – prendem, parecendo
colapsar; e toma cuidado quando não se abre uma válvula por si só, quando a
pressão é excessiva, como uma máquina que precise de deixar sair uma parte do
vapor, para não explodir; tens dúvidas que o sangue te passe escorreito pelas
veias, porque sentes a inflamação que te queima e te deixa o corpo num
desassossego.
Qualquer médico diria tratar-se de
um caso sem cura. Nenhuma ciência poderia explicar. A tua vida depende
totalmente dessa máquina que é o coração, a máquina espantosa, com engrenagens
sinuosas e perfeitas, diferentes de qualquer obra de engenharia que possamos
apreciar, o músculo capilar interior, ensarilhado em cordas tendinosas até seu
secreto interior.
Um coração a falir é a morte. ‘A máquina parou, / deixou de tocar’, como diz a canção? Então, estás tramado.
Como viver, então, com um coração novo? E como abandonar assim tão levianamente
– tão tolos, os apaixonados! – o seu velho coração? Adoptaste um novo coração,
como quem foi transplantado. Mas viver com o coração que agora te dá vida não é
solução para todos os teus problemas. Pensas que é a única forma de
sobreviveres aos danos colaterais. Deste o teu coração em troca desse que
trazes. Talvez estejas errado, talvez devesses apenas partilhar o teu coração,
não trocá-lo, não entregá-lo. Não irão repetir-se os sintomas? Não haverá,
igualmente, batimentos irregulares, válvulas que bloqueiam, sangue a correr nas
veias tão velozmente como um rio em fúria? Não haverá fugas?. – Esta é a
urgência de um amor novo, de um amor pela primeira vez experimentado (certo que
todos os amores que começam são diferentes), amor jovem, fresco, lhano de
ilusões e ânsias e perdições.
Já
Teixeira de Pascoaes dizia que o amor transforma as pessoas noutros seres,
passa-os para outras dimensões, em morrendo um no outro, sem repetições de
forma ou conteúdo, que repetir é estar parado, ocupar o mesmo lugar, e o amor
há que evoluir – “O amor é fome de outra vida, desejo de transitar. Quando dois
amantes se abraçam e beijam, entredevoram-se, morrem um no outro, de algum
modo, e transitam para um novo ser. A vida não pode ficar em nós, a repetir-se,
que repetir é estar parado, é ocupar o mesmo lugar”.
Talvez
mais simples fosse se o amor pudesse vir apenas em visita, como n’O Amor em
Visita, de Herberto Helder, o amor estar quando urge querê-lo, e depois estar e
não estar, o amor refluindo nas suas contradições – de plenitude e vazio,
prazer e retracção: “E as aves morrem para nós, os luminosos cálices / das
nuvens florescem, a resina tinge / a estrela, o aroma distancia o barro
vermelho da manhã. / E estás em mim como a flor na ideia / e o livro no espaço
triste. / Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento / a cevada pura, de ti
viriam cheias / minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses / em minha espuma, /
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?”, acrescentando – “Beijar teus
olhos será morrer pela esperança”.
Aqui
chegando, apetece-me logo ir ao Eugénio de Andrade (como está a apetecer-me
desde o mais preambular começo) – o amor é “um barco no mar”. E é isso: o amor
é um barco no mar. Esta equação serve todas as formas de amar, cobre todas as
necessidades. O amor, simples, amor apenas, amor em acção.
O
amor só serve em acção. O amor é amando, que o diga Heman Hesse – “Mas amar e
desejar não é a mesma coisa. / O amor é o desejo que atingiu a sabedoria. /O
amor não quer possuir. /O amor quer somente amar”.
Mas também há muita energia
negativa em torno de um ser apaixonado, porque é tão diminuída a sua visão, tão
reduzida a sua capacidade de perceber o que o rodeia. Se entras num buraco negro,
dificilmente voltarás a sair. Pois,
o amor pode ter um lado negro, uma secura extrema, uma vivência cega, que magoa
e corrói – que não deixará talvez de ser uma forma de amar. Uma vez, li em João
Paulo Borges Coelho: “[…] uma sombra […], uma prova de que o ciúme é um estado
intemporal, que se acende no presente, mas queima também o passado”.
Nunca
entendi expressões como ‘sem ódio não existiria amor’, que é exactamente o
mesmo que dizer que ‘sem guerra não existiria paz’. Não entendo isto. Amor é amor.
Ódio é ódio.
O que é isso:
AMOR? O que é isso: AMAR?
Esse poço de
contradições – “um não querer mais que bem querer”, como diz Camões, nesse
“fogo que arde sem se ver”, nesse “nunca contentar-se e contente”, cuidando que
“ganha em se perder”. Querer “estar preso por vontade”, é o amor?; “ter com
quem nos mata, lealdade”, é isso o amor?
Contrariedades:
assiduidades e esperas; urgências e distâncias; aproximações e amuos;
assoberbamento, saudade; vagares e pressas; chegada, largada; avanços escoados,
demorada volúpia. Tempo que sabe a muito, sabe a pouco, sabe a nada.
Há isso. E há os
são valentins.
É a saudade um dos
grandes estorvos ao amor. A distância,
sempre a distância a manter os corpos separados. Mas o que são os corpos, que
não matéria? O que são, que não invólucro de pele a envolver carne e osso, para
um abismo de sensações que se descontrolam tão facilmente? O que são, que não
carapaça, embalagem, caixa de embrulho?. Não, os corpos não eram apenas o invólucro. Eram o desejo materializado,
o desejo que vinha de dentro para fora e que transbordava como os rios, em
ideias inquietas, prontas a explodir.
Manhãs claras.
Pássaros de asas abertas, correndo ao ninho – amor: É sempre noite antes da madrugada, e a madrugada que colhe os dias é
inóspita e fria, e hostil, como desabitada. E faz-me lembrar nada. A ausência
tem o cheiro do outro diluído. Saberá alguém dizer a cor da ausência? A que
sabe? Deve ser de uma cor opaca e esbatida, porque vem e deixa as coisas
turvas. Deve ser agre, porque sabe às coisas que azedam...ou tão-pouco sabe.”
E a casa do
amor, como ninhos? – “o bem que neste mundo mais invejo” – a casa que diz a poeta, construída em
planos paralelos ao real, acima da mente comum, na urgência de um encontro – “Se tu viesses ver-me hoje à tardinha / a
essa hora dos mágicos cansaços” – a casa de fazer o amor – “e
me prendesses toda nos teus braços”.
Mágicos cansaços, quando os corações batem forte e o amor é o desejo de
amar, olhos que brilham mais alto, braços que se entrelaçam infinitamente pelos
corpos, dedos em danças pelos cabelos. À tardinha é bom de mais, como era para
a Florbela Espanca.
Tontos
apaixonados não sabem – situações muito
semelhantes acontecem no amor em todo o lado, tão semelhantes que chegam a ser
repetidas, como transparências, como passadas a papel químico: como lemos num
livro, vemos num filme, ou intuímos num poema, sentimos numa canção. O
sofrimento também faz parte do amor.
Depois, vem a
Sophia e diz – “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo”; vem
Séneca e diz que o amor não de define – “sente-se”; vem a Yourcenar e diz que –
“quanto desespero se esconde na abnegação e quanto ódio se mistura ao amor”;
Vem a outra Marguerite, a Duras, e diz – “No amor não há férias nem nada que se
pareça. O amor deve viver-se plenamente, com o seu aborrecimento e com tudo”; o
Saramago diz que – “O amor não resolve nada. O amor é uma coisa pessoal, e
alimenta-se do respeito mútuo. Mas isto não transcende para o colectivo. Já
andamos há dois mil anos a dizer isso de nos amarmos uns aos outros. E serviu
de alguma coisa?” Pois. Serviu?
Vem o Camilo com
amores de perdição.
O amor é ires-te
lentamente habituado à transparência dos
dias ou à sua opacidade, à escuridão e à claridade, ao ruído da cidade e ao
silêncio da casa, às coisas paradas (como o tempo na cabeça) e aos rios que
correm obstinados; deixar que as fases da lua iinflaccionem o vaivém do mar, e
pássaros migrem, como faz a toda a hora o amor. É deixar a Física funcionar – é
esse o grande mistério dos dias que envolvem o amor.
É seguir um rumo
até à eternidade do amor – porque cada amor tem uma eternidade própria, que é o
tempo que há-de durar. Por vezes,
sonhamos que somos eternos, mesmo sabendo que isso é impossível, mas no amor
queremos que o outro seja eterno em nós, e que nos arraste na sua eternidade,
como fossemos o rasto incandescente de uma estrela.
Nem sempre o amor é uma ilusão. E se o é, pode sê-lo
apenas parcialmente, nas pequenas coisas embaciadas pelo entusiasmo da razão. O
que é a distância no amor, quando tudo funciona pelas leis da Física? O que
valem as leis do amor? Se achas que vives uma ilusão, não viveste, ainda, o
verdadeiro amor.
Depois vem o
Heberto Helder e diz – “Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei
contigo”.
E, como se não
bastasse, vem o Faulkner e grita bem alto – “O sexo e a morte: a porta da
frente e a porta de trás do mundo”.
Amem(-se) muito.
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