terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

É PRECISO FALAR DOS GREGOS


“The term Zeitgeist is referred to the experience of a cultural dominant environment that defines the Hegelian thought, an era of dialectic progression of the person and moreover the whole world. Hegel’s most important contribution is the formulation of the Weltgeist concept, “the spirit of the nation.” This spirit is essentially alive and active throughout human history. Today, the Weltgeist is stuck on an intermediate stage known as the global historic spirit. The stagnation is caused by the lack of cultural renaissance of the people, because they finished with the creativity in the historic growth of the spirit guiding us.”*
REGINA SARDOEIRA
Hoje vou falar dos gregos, porque é preciso. Mas não dos atuais, que deles pouco conheço, confesso. E creio que vou necessitar de algum tempo para os entender cabalmente, enquanto povo.

Para falar dos gregos, preciso de recuar até aos séculos VII, VI, V e IV a. C. e invocar o espírito dos grandes homens que, a crer na História e consultando as respetivas obras, foram os profetas deste tempo. Profetas, sim, não me enganei. Mais do que os pioneiros de tudo quanto, no ocidente, é cultura, os gregos da antiguidade conseguiram, na luz da sua atmosfera mediterrânica, compreender tudo o que havia para compreender no nosso tempo (e logo no tempo deles, os gregos atuais). Basta abrir, ao acaso, um livro de Platão, ou ler um aforismo de Heráclito ou uma sentença de Pitágoras (e porque não um teorema?), ou lançar os olhos pela rigidez imaculada da lógica aristotélica, para sentirmos o bafo da eternidade. Seriam homens ou semideuses, esses, depois dos quais o génio coletivo estiolou?

Devo estar a exagerar, decerto estou, mas deixem-me dar largas ao regozijo de perceber, mas de perceber com a imaginação, com os sentidos, com a alma, que a História deu a volta, que o mundo se virou ao contrário, que o sul subiu até ao norte e lançou o seu esplendor sobre o gelo tecnocrático da civilização de uma certa Europa. Este grito de puro prazer tem que ser dado hoje, não amanhã ou depois, quando as bestas do apocalipse lançarem a sua fúria verrumante sobre o calor de uma vitória e desfizerem o que hoje podemos celebrar. 

A História não se repete, o espírito do tempo passa apenas uma vez sobre determinado lugar para engrandecê-lo; e depois afunda-o nos lodaçais do esquecimento, e para sempre; e então, a crer no insigne alemão, que deu pelo nome de Hegel, este brusco levantamento de uma nação em busca da sua identidade, não passará de fogo-fátuo que forças obscuras liquidarão a breve trecho – porque o zeitgeist já lá esteve, nessa Atenas fulgurante, porque a seguir levantou a sua glória em outros lugares e deles saiu, para sobrevoar todo o mundo, sem nunca mais poisar: decerto porque nenhum mereceu, de novo, o sopro da imortalidade.

Ou talvez haja, aqui e além, depois desses gregos, no fluir conturbado dos tempos, na História, um ou dois archotes a iluminar o mundo. Mas todos eles, invariavelmente, cederam ao garbo da imperialidade, ao impudor da corrupção ou da ânsia da grandeza, para lá do razoável, e abafaram o weltzeit que se dispunha a brilhar.

Ora, o ilustre idealista alemão talvez estivesse enganado, decerto o zeitgeist pode atingir o mesmo território mais do que uma vez, decerto a Alemanha não é – como cria o filósofo – o local da síntese dialética e a concretização, em povo, da Ideia Absoluta. Decerto os gregos estão vivos, aqueles, os da antiguidade, com as suas vestes claras e a sua tez morena, lançando os olhos no horizonte sem mácula dos céus mediterrânicos e, incólumes, ressurgiram para dizer, uma vez mais ao mundo, a verdade absoluta sobre o modo certo de viver.

Escrevo isto hoje, pode ser que não possa escrevê-lo amanhã, e tenho pressa. Tenho pressa de gritar que os gregos viram, no século V a.C., a democracia a nascer e a corrupção a lançar a sua teia nefasta, conspurcando o governo do povo e condenando à morte o mais sábio, feito lenda. Tenho pressa de proclamar que essa democracia ateniense, urdida nas linhas diáfanas dos tais horizontes definidos e brilhantes, engendrou o seu contrário e que alguém o escreveu em letras que, ainda hoje, podem ser os guias dos senhores do mundo, alguém advertiu, no seu tempo, que a liberdade desenfreada atrai os oportunistas, os oportunistas amam o fulgir do oiro, o fulgir do oiro gera a ganância e a ganância é inimiga de qualquer conceito igualitário porque se faz, somente, à custa da opressão sobre os mais fracos e logo da desigualdade. Quem assim, claramente, o enunciou, num tempo em que o declínio agoirava a limpidez da atmosfera e ameaçava levar consigo todo o lustro de um tempo memorável, foi o grande Platão e a equação é aproximadamente esta: a democracia gera o corrupto, a corrupção promove a desigualdade, a desigualdade concebe o descontentamento e o descontentamento engendra o desespero, no contexto do qual se demandam os salvadores – e nasce o tirano criado na fome de viver que acossa os oprimidos.

Ele escreveu-o nessa obra grandiosa que se chama República, e custa a crer que, tantos séculos idos, a humanidade não tenha levado a sério a profecia platónica.

Esfumou-se a Grécia e já quase nada resta do seu esplendor ancestral, a não ser ruínas majestosas – porque o invasor não pôde levar os templos, pedra a pedra – e por esse mundo fora, em museus de outros países, os tesouros da civilização grega, as estátuas decepadas, as cabeças separadas dos seus troncos, os “apolos” mutilados e toda uma plêiade de sussurros trucidados de um povo gloriosamente concebido, lembram os retalhos de uma manta polícroma, mas acinzentada pelo uso ilegítimo que, finalmente unida, representaria a coesão universal.

Se, efetivamente, os gregos atuais despertaram para a descoberta do mundo que lhes convém, se ouviram, nas suas mais secretas profundezas, as sentenças dos sete sábios e dos outros todos, decerto lançarão luz sobre nós, nós mesmos, estes portugueses do sul, subjugada a luz solar que nos enuncia nos frios nevados de muitas arrogâncias, e dar-nos-ão o alento da sua coragem, que tem sido confundida com ousadia. Mas… e se for mesmo – ousadia? Pois não é de fender os limites e ultrapassar fronteiras que o mundo está, acima de tudo, carente? Não é no caminhar altivo, rumo a si mesmo e em sintonia com todos, que o mundo finalmente encontrará o seu espírito – o zeitgeist da filosofia de Hegel, sem o predomínio germânico, esse que – apesar da plêiade de filósofos dali oriundos que também iluminam o mundo – tem espalhado arrogância e genocídio (que nós, os do sul e os outros, não podemos nunca obliterar, mas que eles preferem justificar ou elidir) pelos portões da história? 

Ergamo-nos com os gregos, pensemos na beleza infinda e na grandiosidade dos profetas e guias deste nosso tempo – mesmo que nem sempre tenhamos consciência deles – sigamos-lhes o exemplo e demos pisadas semelhantes, rumo à nossa grandeza, simultaneamente individual e coletiva. 

Eu acredito que o génio e o espírito, uma vez erguidos, encontrarão o modo de aniquilar o caos vergonhoso da miséria material a que foram sujeitos esses povos por onde caminhou a luz da imortalidade; e todo o lixo a que se resumem dívidas, deficits, pactos económico-financeiros, o jugo das moedas únicas ou díspares e o resto, que a ser escrito poluiria a elevação deste meu texto, desapareceria num passe de mágica. Porque acreditem-me: tudo isso, parecendo sério, é o perfeito embuste com que nos põem vendas, cerceando a nossa força. 

(Esta não é uma crónica política, nem filosófica, não pretende analisar ou demonstrar o que quer que seja: é apenas tudo aquilo que me ocorre, hoje, e pouco importa o rigor ou a erudição que, decerto, eu própria poderia, nas minhas palavras, detetar. E no entanto, sinto – porque hoje apraz-me sentir – que acabei de escrever verdades insofismáveis.)


 *http://www.mtholyoke.edu/~zamor22k/classweb/zeitgeist/Zeitgeist.html

2 comentários:

  1. Apreciei MUITO o conteúdo deste texto e a forma como a abordagem foi feita... porque "é preciso falar dos gregos"! Parabéns à autora.

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