domingo, 8 de fevereiro de 2015

É PI SÓ DIOS

MIGUEL GOMES
Há um cão que vagueia na estrada, desatento, arfando como quem sorri ao patear o asfalto, de costas para o trânsito. Negro como a noite, dia não fosse, diria que me sorriu, o bicho.
Há um Sol que se espreguiça de encontro a um muro, como que se lembrando que é quase Outono e as pedras do muro são quentes ao final da tarde. Sol, de sol em sol, até se aninhar rendido no olhar de quem se acriança.
Há um sorriso de uma criança, que recorda com satisfação, de olhos fechados, o primeiro almoço na cantina da escola.
Há um atirar para o restolho dos restos dos dias que vivo.
Quatro vidas se vivem, em quadras que jamais escreverei. Quatro, que quatro mil, quatro milhões que fossem, que ao me atirar para esta vida, ficou de mim no lado de lá aquilo que jamais emergirá.
E a vida que se atiça aos dedos, saltando, tecla em tecla, letra em letra, sem que se dissipe o nevoeiro que trouxe ao cais dos meus olhos uma palavra.
Há.
E isso basta-me.

*

Os bancos de jardim, do mundo, revelam-me os contos que outros viveram, pernoitando, ao som do arrufo dos pombos, repousando em si a poeira que pés incautos levantaram, ainda noite, à água que se refresca pela madrugada, no cajado rompido de um músculo cansado, a quem o corpo pede, pela última vez, para o passo que iniciará o término de um longo caminho... Pode a vida sobrar num cabo ventoso enquanto o horizonte teima em se fazer mar?

*

O mar estendeu-se, uma, duas... sete vezes seguidas me deitou e construiu, até eu dar por mim a olhar para ele, despedindo-se uma, duas... sete vezes seguidas a meus pés.
Era ninguém, apenas onda, seguindo pelas marés sem senso de mim mesmo...
Falo contigo, mar, uma, duas... sete vezes seguidas e pergunto-te se o tens nalgum lado e se está feliz, porque as minhas ondas, mar, estão uma, duas... sete vezes seguidas sem saberem se sou maré suficiente... Ou se seria, uma, duas... sete vezes seguidas o mar que me ensinaste a ser.

*

Tens as sapatilhas rotas!
Anuncia num tom jocoso, apontando para baixo da mesa, onde ele, com os pés cruzados, fazia por esconder o bocado de meia branca que fugia pelo pequeno rasgão na sapatilha.
O rubor na face, as orelhitas vermelhas pelo misto de vergonha e fúria.
- O meu pai diz que tenho o pé forte, não é roto!
E enquanto a resposta parecia ter incendiado mais as gargalhadas, já ninguém ouviu a voz sumida do petiz
- Tenho umas novas para a procissão...

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