MIGUEL GOMES |
O ruído resume-se ao roncar resignado do aspirador, ao arrastar arranhado das rodas de plástico no chão, ora soalho de madeira, falsa, ora alcatifa. Uma ou outra criança reclama algo imperceptível e os pneus dos carros martelam a borracha contra os paralelos, simetricamente caóticos, os pneus e os paralelos. E as pessoas. A tarde, embora ainda não seja tarde, parece querer afastar-se do dia. Talvez por ter nascido cedo, ainda o dia se virava na cama destapando o corpo nu da noite, e os pés terem-se enterrado na terra fria, ressuada, enquanto as mãos desabituadas moldavam descalejadas o cabo da enxada. Se o dia nasce cedo, na boca tem que estar a fermentar o sabor do café, subindo palato acima até se encontrar com as recordações dos desejos de ver nascer o resto do dia sentado num tufo verde e ainda orvalhado. Quedo-me um pouco, a enxada apoia o meu corpo semi-sonhador, o suor exagera a quantidade trabalhada, fruto do despreparo do corpo, a Terra girou e a terra não voltou, espreita o Sol que sobre as nuvens teimosamente reluz sob um Universo que, teimosamente, inocentemente, acriançadamente teimo em querer ver girar nas pontas dos meus dedos como se fosse um berlinde, tal e qual ao que encontrei e apanhei raspando com os dedos por entre os paralelos a terra que o prendia. Minimizo a janela do processador de texto, a música continua a tocar, a criançada joga futebol num estádio imaginado por entre paredes de tijoleiras mal assentadas, a bola bate uma e outra vez no separador de metal e, uma e outra vez, assusto-me e espero um impropério do vizinho. Nada, silêncio. Quando um carro surge na estrada, imagino, não o vejo, o barulho é similar a uma chuvada repentina. Na minha ânsia de me sentir árvore, de novo, imagino e desejo que caia uma bátega. Sei-me egoísta, na vontade de cada um morará uma ânsia diferente, mas porque sei que não é possível o céu desnublado parir um aguaceiro que levanta a poeira que trago agarrada aos olhos, continuo a imaginar e a deixar que a chuva caia e eu corra a abrigar-me, patetice minha, porque correria eu que estou aqui, abrigado, agarrado, a esta grafia que pulula nos cristais líquidos do monitor. Não falta nada para deixar tolher os olhos molhados, sabes, por aquela chuva que sai de dentro, e vislumbrar a estrada esburacada, onde moram meia dúzia de poças, rasgada na encosta deste cabeço transladado do Sul para o Norte, com um muro natural de terra xistosa por onde nascem matos, giestas que amarelarão um dia, mato seco onde teimo picar-me, e uma escarpa separada do precipício por uma e outra árvore que germinou como muitas pessoas, no limite do caminho e no infinito da queda, pendendo ramos para o caminho e sombra para o resvalado esverdeado solo que vai guiando o tempo até ao fundo, bem lá ao fundo, onde se esgueira um regato por entre fragas e onde algumas urzes e pessoas sonham beber. Pensei que poderia sentar-me aqui contigo, mesmo no meio da estrada, não interessa se não me leres, talvez seja melhor assim, sentir o corpo enregelar enquanto a água se evapora para dentro do corpo, cruzar as pernas e sonhar ascender como o fumo do café numa cozinha improvisada numa casa construída ao redor de uma lareira.
Quem surgir terá dificuldade em perceber o que fazemos ali, no meio de um caminho que não sabemos onde vai dar, mas como transmontano de um mundo sem espaço para sonharonhos, neologisticamente falando, os sonhadores de sonhos, passará por nós, desviando-se, levantando a aba do chapéu grisalho e pastoreando um bom dia, ainda que seja noite. Eu vou cansar-me, como sempre, de estar na mesma posição e vou querer levantar-me e partir por aí, mas tu vais, pacatamente, pousar a mão fria no meu braço húmido e enquanto viras a cabeça para mim sei que me vais falar com o olhar e, serenamente, com o sorriso, convencer-me a ficar mais uma eternidade no local onde parirei horizontes, aqui, ou em Trás-os-Montes. Sem sabermos de que lado nasce o Sol forçaremos o mundo a rodar no sentido que quisermos, peregrinando-se numa sideralidade de movimentos ao redor de uma galáxia ou, então, se desejares, se não te assaltarem os medos, poderemos confinar o infinito ao ondular do cabelo entrelaçado nos teus dedos.
Sem comentários:
Enviar um comentário