CLARA CORREIA |
Podia até ser uma chuva ligeira de Verão a pintalgar o pára-brisas, mas não era; como que mandadas por hipotéticas nuvens alojadas no terceiro e último andar do meu prédio, profusos pingos de aparentes sementes e pão finamente esfarelado caiam da janela para o asfalto onde, mal assentavam, desapareciam debicadas com avidez pelos pombos. Desde há pouco tempo hóspedes dos beirais dos prédios da praceta, para indignação dos moradores, os pombos justificavam ali, à frente do carro que eu apenas retirara do estacionamento, o facto de tanto se terem afeiçoado aos beirais de banais prédios de uma banal praceta totalmente despojada, portanto, de estátuas e monumentos plenos de relevos e reentrâncias, residências predilectas da comunidade colombófila urbana. Debrucei-me sobre o volante e, três andares acima dos meus olhos revirados, a minha vizinha mais caseira, digamos assim, atirava a tal mistura de sementes e farelo de pão para os que, provavelmente, seriam os seres viventes que mais atenção lhe davam ao receberem a sua própria atenção.
Esquecida do meu compromisso, eu continuava ali, espectadora do animado repasto que, a avaliar pelo sorriso da minha mais colombófila vizinha, estendia o ânimo à altura de três andares. No auto-rádio, “I can get no satisfaction”, dos Rolling Stones, a ilustrar musicalmente a informação de que naquele treze de Julho se celebrava o “Dia Mundial do Rock ´ n Roll” … em suma, a evocação da recíproca influência entre as diversas formas de arte na eclosão das chamadas revoluções de hábitos e costumes à escala mundial.
Um vizinho de prédio, do prédio vizinho à esquerda, postara-se, entretanto, atrás dos pombos, aparentemente indeciso entre lançar o seu olhar fulminante para as aves ou para mim que, inexplicável e incompreensivelmente no seu parecer, teimava, dentro do carro, na espera pelo fim da refeição de sementes e farelo de pão para não a perturbar nem atropelar os comensais alados. Preconceito, ou não, acerca do prejuízo da saúde pública causado pelos pombos, aquela adivinhava-se ser uma querela em vias de se gerar entre parte dos moradores da praceta e a minha vizinha do terceiro andar, nessa altura já alvo da fúria verbal do vizinho de prédio … afinal, o suposto guardião dos supostos bons costumes na praceta contra a vizinha subversiva, como que a ameaçar a paz e a moral comunitárias! Esta, antes de se recolher, teve para o seu opositor uma expressão de indiferença atrevida, a mesma com que, afinal, se impôs o Rock às mentalidades dos anos 50 e 60, como lembrava naquele momento a voz radiofónica no final do tema dos Rolling Stones … os históricos e, simultaneamente, contemporâneos “calhaus rolantes”. Na defesa de convicções que desbravem preconceitos e caducos conceitos, mantém-se actual a necessidade do espírito original do Rock e do arremesso de “calhaus rolantes” argumentativos ou sob a forma de expressões de indiferença cujo atrevimento no confronto ao “status quo” ajudará, certamente, a secar ervas daninhas, ainda resistentes, de intolerância.
Com a natural debandada dos pombos, acelero, por fim. A cantarolar os acordes dos Stones, penso que “I can get no satisfaction” parece ser a máxima que nos rege, e ao mundo, na incessante e sempre turbulenta busca pelo auto-conhecimento e pelo bem-estar.
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