terça-feira, 21 de julho de 2015

VAIDADE DAS VAIDADES, TUDO É VAIDADE

Túmulo de Heinrich von Kleist
REGINA SARDOEIRA
Heinrich von Kleist, escritor alemão (1777-1811), teve um percurso existencial singular. Educado na rigidez prussiana do imperativo categórico kantiano, quis pautar a sua vida pelo rigor ético-religioso do pietismo. Mas o seu espírito turbulento, inquieto e timorato, a sua vontade indómita de ser o maior ou não ser nada, precipitaram-no em abismos dos quais não lobrigou encontrar saída.

Contemporâneo de Goethe e Schiller, percebeu que o génio que bafejara, esses a que a História saberia render tributo, nunca iria sobrevoar a sua figura, mesmo sendo escritor e poeta, mesmo sentindo em si os arroubos da criação.

Decidiu então que a vida não se justificava, no lodaçal intermédio das pequenas realizações; e querendo celebrar a morte, porque para ela quis lançar-se, procurou os meios de sair em festa, tornado glorioso, de um mundo que lhe traíra o génio. Daí em diante – tinha 33 anos de idade – sempre que se entretinha em diálogo com um amigo, atirava-lhe de chofre: “Queres vir e morrer comigo?”

Horrorizados, esses presumíveis companheiros de suicídio, abanavam a cabeça e desapareciam para sempre da vida de quem assim lhes propunha um pacto de morte.

Um dia, porém, o seu apelo, decerto monstruoso, encontrou a solidariedade e uma amiga, Henriette Vogel, condenada à morte nos trâmites de uma doença incurável, aceitou o repto e marcaram a celebração.

Juntaram-se, nas margens do Lago Kleiner Wannsee, no dia 21 de Novembro de 1811, riram, conversaram, beberam vinho. Ao fim do dia, dois tiros – Heinrich atirou em Henriette e depois nele próprio – concluíram a missão na terra daqueles dois foragidos.

Esta, decerto, não é uma história para narrar a um adolescente, dizendo-lhe: “Procura ser grande e se o não conseguires, suicida-te!”; e contudo marcou os meus pensamentos mais juvenis quando a conheci na obra “O Combate com o Demónio” de Stefan Zweig. Tal como Kleist, eu sentia que pouco importa ser medíocre na arte que estabelecemos como sendo a nossa vocação; e também que se não conseguirmos ser grandes mais vale mergulhar no mais profundo dos abismos e ser nada.

Apesar de tudo, fui confiando no talento que me foi atribuído – porque o génio da escrita, diga-se o que se disser, não se aprende em cursos especializados ou segundo fórmulas infalíveis. O génio sussurra em nós e é tão imperioso enquanto sussurro que, mesmo inaudível para os outros, ecoa, feito grito, no mais recôndito de nós. E foi por isso que eu soube que teria que ser escritora, que sempre fui escritora, logo que a técnica me foi dilucidada, e que apenas necessitei de dar corpo ao manancial de palavras que perante mim se desdobravam, logo que agarrava papel e caneta.

O certo é que, mesmo sendo grande por dentro, mesmo sabendo que o meu talento é verdadeiro, forte e vigoroso, as obras saem-me das mãos e perdem-se no tumulto deste tempo, recheado de génios palavrosos. Em qualquer lado esbarro com autores de livros, a cada momento leio que alguém se auto-apelida de escritor, por toda a parte se fazem lançamentos e apresentações de obras. 

Perante semelhante surto de gente que escreve e encontra meios de ser publicada, perante a prodigiosa avalanche de escritores cuja produção, afinal, se compara a coisa nenhuma de que valha a pena falar, eu hesito, tartamudeio e não publico.

Quando me dei conta desta espécie de destino que me outorgou o génio sem me dar, ao mesmo tempo, as armas e o engenho para lhe dar uso em pleno e elevá-lo ao triunfo, lembrei-me de Heinrich von Kleist e decidi, não terminar a vida ao som de um tiro nas margens do Tâmega, mas reservar, para mim apenas, a voz que me pertence, sem sujeitá-la à triste condição da propaganda, do auto-elogio e do embuste. Sim, escrevi livros, sim, escrevo livros – mas serão meus, apenas. E assumi-me como póstuma.

Não contava, porém, com o bloqueio, este que me faz adiar, quotidianamente, a conclusão dos meus livros, a publicação dos que estão escritos, o estrangulamento de ideias para novas euforias criadoras. E é então que o fantasma de Kleist volta a assombrar-me: valerá a pena continuar esta missão que em tenra idade criei para mim? Devo resignar-me à luta pela sobrevivência, apanágio deste nosso cinzento século XXI, e deixar para todos esses que ousam abrir a boca e dizer: “Sou escritor, olhem, vou apresentar mais um livro!”, todo o campo disponível?

Leio-os e sinto de que modo se iludem com os elogios fáceis e a fácil divulgação, num mundo em que todos, sem excepção, podem subir à ribalta e opinar. Leio-os e só aqui e ali sinto latejar o génio e incandescer a chama da verdadeira criação. O resto é fumo.

E lembro o Eclesiastes e a sentença que, há muito tempo, aprendi em grego: Mαταιότης ματαιοτήτων, τα πάντα ματαιότης (ou Vaidade das vaidades, tudo é vaidade), cito-a baixinho, enquanto me calo.

Não pertencerei jamais a esse incómodo bulício de artífices, que um dia decidiram aproveitar um ou dois trunfos e jogá-los nas arenas da celebridade literária. Tenho trunfos, mas não são os publicitários e não ouso fazer propaganda de mim: por isso, o mais certo é ficar na sombra enquanto se erguem todos aqueles que não tem suficiente modéstia para ficar escondidos na penumbra do seu ser medíocre.

Retorno a Heinrich von Kleist para dizer que, sendo decerto pouco falado a nível mundial, obteve a grandeza a que sentiu não ter direito, face aos grandes já instalados, e hoje o seu túmulo e o da malograda companheira de morte podem ser visitados perto do Kleiner Wannsen, às portas de Berlim. Dele pude ler alguns contos entre os quais o magnífico Michael Kohlhaas, O Rebelde de que Volker Schlondörf realizou um excelente filme, em 1969. E nessa obra, tornada afinal grande e imortal, percebo a cintilação do génio e a obstinação de carácter de quem não recua perante uma injustiça e prefere a morte à cedência da honra. 

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