REGINA SARDOEIRA |
Estas palavras foram proferidas pelo primeiro-ministro de Portugal, na véspera do referendo grego e cito-as para me servirem de mote, uma vez que sou portuguesa e é este homem, com este discurso, que vem regendo o meu destino desde há quatro anos.
Eu não sei se ele está convencido das próprias palavras, quando afirma que a crise está ultrapassada, que o país está a caminhar de vento em popa e que, ao cumprirmos as nossas obrigações, temos dado, enquanto portugueses, uma lição aos outros países europeus e ao mundo. Muitas vezes acontece que alguém se auto-ilude a tal ponto, que passa a acreditar nas próprias mentiras ou então dirige o seu olhar apenas num sentido, sendo incapaz de ver a linha do horizonte como um todo
A primeira palavra que quero destacar neste conjunto de citações é a palavra “ajudar”. Obviamente, o primeiro-ministro considera que soube direccionar a ajuda que foi dada ao povo que governa, que quis ser ajudado e que se ajudou a si próprio. Entretanto, outros não o fizeram. Mas ele omite que nós, portugueses, absolutamente inocentes dos negócios ruinosos que foram feitos em nosso nome, para beneficiar apenas uma espécie de cúpula nacional e internacional, temos sido obrigados a sofrer as custas desses negócios e continuaremos reféns dessa ajuda e das suas consequências, enquanto o nosso esforço e sacrifício servirem os interesses daqueles que, afinal, ao ajudar-nos, se tornaram nossos donos. Logo, nestas condições, não querer ser ajudado por agentes que visam perpetuar um estado de crise, mais ou menos aguda, conforme as épocas (pois dessa crise vive, afinal, a sua pujança) está a ser responsável e adulto e a recuperar a sua dignidade, em vez de curvar a cabeça servilmente, esperando as palmadas nas costas e os elogios por ter tão bem cumprido os ditames dos chefes.
Os povos podem escolher em democracia, mas também podem escolher mal – diz ainda o primeiro-ministro. Como é evidente, não estava a referir-se à escolha que os portugueses fizeram há quatro anos atrás, votando no seu partido. Visava outros países e outras escolhas, tinha, subjacente a tais declarações, a sua posição relativamente ao referendo grego que iria acontecer no dia seguinte e que – acreditava ele – poderia varrer de uma penada essa gente de rosto jovial e gestos despretensiosos que teve a coragem ou o bom senso de perguntar ao povo o que deveria fazer – em nome dele. Incapaz de ver grandeza neste gesto, incapaz de compreender que a democracia se faz neste permanente inquérito ao povo, quando estão em jogo as decisões da sua própria vida, repreendeu os gregos que votaram nestes homens e desejou que, pelo referendo, o povo desse, afinal, o dito por não dito.
Pedro Passos Coelho não é democrata, nem compreende a democracia e, como ele, muitos líderes de muitos países deixaram cair a voz democrática que os elegeu, para, ao contrário, realizarem somente o que lhes dá mais jeito, de costas voltadas para os eleitores. Mas, eis que se levanta uma voz e essa voz, multiplicada por milhões, afirma e reafirma a sua recusa ao embuste, ao logro, à escalada de oportunismo que mata, literalmente, a vida do comum das pessoas.
Ao fazê-lo, o governo grego e o seu povo deram ao mundo uma lição de coragem, disseram a todos que rejeitam a ajuda envenenada que lhes foi dada, que não querem mais pagar pelos erros e fraudes dos senhores do mundo, que, apesar de serem devedores, não perderam a identidade ou a dignidade e querem continuar a ser donos da soberania a que têm direito. Mas o primeiro-ministro de Portugal não faz coro com eles, destaca-se com arrogância de tais procedimentos e prossegue na charada, discursando para os jovens como se fosse o salvador de que todos necessitavam e ainda necessitam. E vai curvando, mais e mais, a cabeça àqueles que permitiu tornarem-se os nossos donos e carrascos.
Pouco importa o que vai acontecer em seguida, na Grécia ou na Europa, pouco importa especular sobre consequências, vinganças e hostilidades. Os gregos mostraram-se fiéis às escolhas já feitas e compreenderam o sentido das acções daqueles a quem deram o seu próprio poder. Se os bancos estão fechados, a culpa não é do primeiro-ministro grego, do referendo ou da vitória do Não. Os bancos estão fechados porque são essas instituições precisamente aquelas que, sendo alimentadas pelos depósitos de todos, receiam não poder levar a bom termo os seus negócios de usura. Parece que os gregos compreenderam aquilo que os portugueses ainda estão bem longe de absorver: em democracia, somos nós que governamos através de uma equipa a que demos o nosso aval, e devemos expulsá-los ou apoiá-los, consoante a natureza dos seus actos.
As questões europeias só se tornaram complexas porque, afinal, esta união é monetária, financeira, económica. É uma união de povos desiguais, com identidades e práticas de vida diferentes, com línguas diferentes e diferentes patamares de crescimento. Acenar a povos menos evoluídos, do ponto de vista material, com solidariedade financeira – e note-se que a palavra solidariedade é, desde logo, um embuste –, dizer-lhes: “Nós incluímos-vos no nosso seio, a troco de transferências monetárias substanciais que vos permitirão crescer” foi e continua a ser um engodo – porque a seguir vem a cobrança, e a solidariedade despe a sua máscara, para revelar o que sempre foi: um negócio de usura, uma apropriação da soberania dos países, vítimas da ajuda financeira. Sim, não tenhamos dúvidas, todo aquele que é ajudado, nestas condições, torna-se vítima daquele que o ajuda e, correndo o risco de ser considerado “irresponsável”, se quer retomar a sua dignidade tem que se demarcar do “benfeitor” e recusar as propostas em que caiu, com que se comprometeu sem saber exactamente no que caía e com que se comprometia.
Todos os discursos da Europa actual têm, como denominador comum, a economia, a finança, a dívida, os juros…como se não houvesse mais nada para definir, para discutir, para incrementar. Os povos são apenas financiadores, devedores, credores e tudo junto…e os restantes valores? Por onde andam a ética, a moral, a estética? Que foi feito da ciência, da filosofia, das artes?
“Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito afirma que o Espírito do Mundo (Weltgeist) passa, num voo extraordinário, por um certo povo, num certo tempo e produz nele resultados excepcionais. A seguir, pela dialéctica contínua da História, viaja para outro lugar, extinguido-se a luz que pairou sobre o povo anterior, que, fruto de antíteses, em que o pólo negativo vence, decai e submerge nos anais da história. O povo grego, nos tempos áureos (corriam os anos do século V a. C) alojou em si o Weltgeist, deu ao mundo e ao tempo tantas e tão grandes lições de sabedoria, inteligência, virtude, prosperidade, conhecimento (...) que ainda hoje podemos, sem hesitação, afirmar que eles inventaram tudo, produziram tudo e são, a muitos níveis, os nossos guias. Mas o Weltgeist abandonou a Grécia, para fulgir, aqui e ali, ao longo dos séculos e, apesar do extraordinário acervo cultural, artístico, politico, científico e filosófico que tanto dá ainda ao mundo, nunca mais, até hoje, os gregos foram o povo hegemónico daquela altura. Até hoje - digo. E digo-o com propriedade. Parece que Hegel se enganou quando afirmou que o espírito do mundo passa por um lugar somente uma vez; ou então está na hora de o círculo dialéctico reabrir, fazendo dos gregos, de novo, os líderes da História. De facto, a Europa (como aliás todo o mundo) está em escombros e só não o vê quem se encontra profundamente alterado do ponto de vista racional e com umas cataratas mentais incomensuráveis. Mas, tal como o mocho é a ave que se levanta ao fim do dia e perscruta a escuridão, sondando verdades que a cegueira da luz não deixa ver e a Fénix mítica renasce das cinzas, para louvar a possibilidade infinita do recomeço, também a Grécia e o seu povo, que parece albergar ainda, no sangue que lhe corre nas veias, átomos de grandeza, querem mostrar ao mundo que não só é possível dizer NÃO à irracionalidade instalada no mundo dos homens, mas também provocar a falência das instituições ruinosas tornadas ilicitamente donas das consciências e erguer um archote de grandeza, como que a fazer ressurgir os tempos de há vinte e cinco séculos. O discurso dos governantes gregos (se bem que torpemente distorcido por quem não enxerga para além das ilusões e fantasmas que lhe foram dando o ser) lido e ouvido sem preconceitos é o discurso necessário, como o são os actos. "O povo é quem mais ordena": diz a música emblemática da nossa revolução de Abril; mas afigura-se-me que são os gregos que hoje entoam esse hino, enquanto nós nos arrastamos, cobardemente, atrás de falsos timoneiros que há muito abandonaram o navio.”
Citei-me a mim própria para terminar, esperando que a herança grega de há dois mil e quinhentos anos e da há seis meses possa ser o archote de esperança que marcará o início da nossa comum salvação.
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