REGINA SARDOEIRA |
Hoje decidi falar de política.
Já há muito tempo que não converso deste assunto com pessoas de direita – no caso de Portugal com gente afecta, principalmente, ao PSD e CDS – mas, desde que começou a ganhar relevo a questão grega, evoquei uma fase da minha vida de militante activa do PCP, em que tentava discutir ideias, sabendo que os meus interlocutores não eram afins comigo. Lembro-me de uma certa discussão em que o meu antagonista me respondia, exactamente, com os meus argumentos, praticamente palavra por palavra! Analisei a questão e fui percebendo que, enquanto eu falava, o outro não me ouvia, antes pensava no que haveria de responder, pelo que as suas conclusões batiam certas, ponto por ponto, com as minhas, embora ele jamais pudesse admiti-lo.
Fui desistindo desses diálogos de surdos, por me parecerem pura perda de tempo: por mais que se diga a esse tipo de pessoas certas verdades, acerca de certos assuntos, e por mais que eles concordem, bem lá no fundo, jamais darão o braço a torcer.
O que eu vejo agora, pela primeira vez na minha vida, é, finalmente, um partido de esquerda (não posso levar em conta o PS português que não considero de esquerda) ganhar eleições nesta Europa conservadora; e logo, os agentes políticos da direita, mais ou menos radical, tentam neutralizá-lo e ao governo que das eleições nasceu.
Tenho acompanhado, tanto quanto me é possível, os factos que vem ocorrendo na Grécia nestes últimos seis meses; tenho lido e ouvido discursos, declarações, comentários, entrevistas dos ministros gregos, principalmente do Primeiro-ministro e do ex-ministro das Finanças. Olho-os e observo-lhes as respectivas posturas: e percebo que são uma espécie de antítese dos “durões” que governam o resto da Europa, em particular daqueles que têm predominância no designado Eurogrupo. Mas são uma antítese positiva, são a alternativa dialéctica capaz de fomentar uma nova síntese e mudar o paradigma.
Porém, pelas condições e pelas regras da união de que fazem parte, por serem cidadãos e governantes de um país que contraiu dívidas incomensuráveis, sujeitas a termos insustentáveis, precisam de se reunir, misturando-se, com os seus homólogos (que apenas o são por ostentarem os mesmos títulos) e tentando negociar. Mas a verdade é que negociar é absolutamente impossível, porque todos esses senhores e senhoras, donos de uma imponência balofa, consideram-se os donos da verdade, os adultos da História e não hesitam em tratar os governantes gregos de cima para baixo.
Não fico absolutamente nada surpresa com semelhantes reacções: estou habituada a elas, basta-me fazer a transposição da minha perspectiva e do meu lugar, quando tento mostrar a verdade a gente enquistada em ideias feitas e não obtenho sucesso algum, para a perspectiva e o lugar destes homens que lutam pela racionalização da vida do seu povo e só encontram opositores arrogantes.
Racionalização – eis a palavra-chave. Porque os senhores da Europa perderam, em absoluto, o uso da razão e estes (os governantes gregos e o seu povo), que merecem respeito, não só porque são pessoas a tratar com pessoas, mas porque representam todo um povo que os elegeu para que lhes resolvam a vida, chegaram junto deles com um discurso coeso e propostas coerentes, à medida da realidade, e logo racionais e humanistas. Como poderiam receber e aceitar o que reconhecerão verdadeiro, mas que, teimosamente, o seu orgulho mesquinho não permite admitir?
E então Alexis Tsipras é literalmente encurralado entre os ideais que defende e com os quais se comprometeu, perante o seu povo, e a necessidade de fazer cedências para evitar um mal maior. E eu escrevi ideais, de propósito, pois acho que, finalmente, é necessário ultrapassar a mesquinha ordem dos valores materiais por que nos deixamos seduzir, para nos centrarmos nas ideias e fazermos vingar os ideais.
Não estive na reunião desta noite, em Bruxelas, que vi descrita como tendo sido longa e terrível e, por isso, não me é lícito analisar o que não testemunhei (e devo dizer que não acredito em quase nada do que oiço dizer nas notícias.). Mas sei de que modo certos poderes podem reduzir a nada aqueles que falam acertadamente, ajustando a teoria à prática.
Analisem este facto.
Vendo que os governantes portugueses, ligados à Educação, estavam empenhados em destruir a capacidade crítica dos alunos, e sendo eu professora da disciplina que, durante anos, foi, efectivamente, a área privilegiada do pensamento, a única que escapava aos limites impostos pelos programas, podendo ser livremente lecionada, desde que garantisse objectivos extraordinários tais como, saber analisar, reflectir, comentar, debater, escrever ensaios, explorando os grandes mestres e fazendo deles guias, esforcei-me por inverter o processo. Eu tinha razão e o Ministério deu-ma. Mas prosseguiu na escalada de destruição do ensino da Filosofia.
Neste microcosmos que sou eu e a minha circusntância, passa-se o mesmo que na batalha entre gregos e europeus: eles conhecem a sua própria realidade e sabem que jamais poderão ser livres e autónomos nas condições que, vexatoriamente, os compeliram a aceitar. Eles sabem que vão ser cordeiros sacrificiais num universo de lobos ferozes; mas também sabem que a atmosfera viciada que se respira naqueles lugares, por onde deambulam e confabulam pessoas de ar grave e mesmo feroz, acabará poluindo, a tal ponto, o ar das ideias que uma outra crise, muito mais perigosa que a económica, surgirá deste confronto, para ameaçar muitos confortos e ainda mais desconfortos.
Quando esse inevitável momento acontecer, pode ser que rolem cabeças (metaforicamente ou não), pode ser que a falsa harmonia entre povos de uma união que apenas quer vampirizar o mais fraco, para garantir a sua estatura, mostre a sua verdadeira face e comecem hostilidades reais.
Será inevitável esse momento? Não haverá nenhum canto para onde escapar, nenhuma brecha por onde perfurar caminhos alternativos? Não há, definitivamente.
O mundo está em guerra, literalmente. Guerra declarada, aqui e além, e muitas pequenas guerras, um pouco por todo o lado. A Europa que se uniu, alegadamente, para garantir a paz, a segurança e a estabilidade, a todos os níveis possíveis e para todos os povos nela integrados, mostra as suas garras em todas as frentes possíveis e sacrifica os mais débeis, dizendo-lhes que só assim se salvarão! Paradoxo dos paradoxos! Como podem salvar-se povos mergulhados na miséria, cuja miséria é o alimento da riqueza dos que dizem querer ajudá-los? Como pode ter o nome de ajuda esta enorme batalha pelo predomínio, em que os povos mais fracos (economicamente, claro) são espoliados, no próprio acto da pretensa ajuda, pelos sempre e cada vez mais fortes?
Eu já tinha compreendido a razão de terem esvaziado a Filosofia do seu papel preponderante na formação dos jovens (e dos homens, portanto). Já tinha interiorizado por que razão incluíram à socapa, Stuart Mill e o utilitarismo, David Hume e o empirismo, entre as matérias da disciplina. Percebo quão mais fácil é um jovem deixar-se seduzir pela teoria da maior felicidade para o maior número de pessoas, em que é moralmente aceitável sacrificar dez para salvar cem, do que pelo rigorismo da ética kantiana em que não é legítimo sacrificar ninguém, como meio de salvar outros porque cada um é um fim em si mesmo, com direito intrínseco à sua existência. E ainda, de que modo é confortável aderir a uma ideologia que garante que todo o conhecimento deriva da experiência, sendo a razão um mero reservatório de impressões, em lugar de aceder à importância decisiva da razão humana cujo poder gera os mais extraordinários universos. Também sei porque criaram para os jovens tantas distracções e por que razão as cidades, vilas e aldeias de Portugal se transformaram em palcos perpétuos em que tudo é festa e tudo é arte.
O pensamento, a lucidez, a capacidade de analisar e entender o mundo para além de um ecrã de telemóvel ou de um comentário no facebook, foram, aos poucos, assassinados e ninguém deu conta: todos estavam mergulhados nos seus pequeninos universos.
Por isso a guerra virá, seja qual for a face que ostentar – melhor, a guerra já está entre nós; só que andamos distraídos com as nossas efémeras e fúteis fantasias.
Disse que ia falar sobre política e falei, embora à revelia de todos os chavões que incessantemente manipulam mesmo as consciências que tinham obrigação de estar despertas. Aprendi há muito tempo (foi Aristóteles que mo ensinou) que “o homem é um animal político” e, portanto, tudo o que faz, tudo o que pensa e tudo o que diz são a pura e plena expressão do seu ser político.
Este é, pois, um texto profundamente político de alguém que não discute política em praças públicas, por já o ter feito antes e perceber que de pouco serve, quando os auditores são estultos, manhosos ou néscios.
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