“Se o teu amigo está doente, oferece abrigo ao seu sofrimento, mas sê para ele um leito duro, uma cama de campanha: mais útil lhe serás desse modo.
E se o teu amigo te fizer mal, diz-lhe: «Perdoo-te o mal que me fizeste; mas o mal que fizeste a ti próprio, como poderei perdoá-lo?»
Assim fala o teu grande amor; ele sobrepõe-se mesmo ao perdão, mesmo à piedade.”
Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, Editorial Presença, pág. 95
Agora que escolhi a citação que me servirá de mote, percebo a complexidade de levar à prática um tal
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REGINA SARDOEIRA |
conceito de amizade. E contudo, dou-lhe o meu inteiro assentimento.
Recorremos aos nossos amigos para que nos ajudem, para que nos oiçam, para que nos passem a mão pelas costas e sejam, enfim, complacentes connosco. Queremos um amigo para lhe enchermos os ouvidos com as nossas desgraças, para que ele nos dê conselhos e auxílio para, enfim, o saturarmos com o nosso ego. Ele, pelo seu lado, procederá da mesma maneira. E assim, a amizade dos homens é uma espécie de fraude.
Quem, entre os amigos, sabe respeitar o silêncio do outro, os erros do outro, as diferenças do outro? E, no limite, os amigos zangam-se e fazem-se, reciprocamente, mal, porque na hora certa, no momento do perigo não estiveram presentes ou traíram, ou mentiram.
Nesse momento dizemos: “O meu amigo fez-me mal, não posso perdoar-lhe.” E contudo, ao fazer-nos mal, traindo mentindo, esquecendo, ignorando, ele fez mal a si próprio porque não esteve à altura; e nós, quando não conseguimos perdoar, fazemos mal a nós mesmos, porque aderimos ao ressentimento.
Assim, a vida dos homens, mesmo quando são amigos, é um logro perfeito e aquele que deseja escapar deste ciclo vicioso, para preservar a inteireza da sua personalidade, precisa recolher-se na sua solidão.
Por mais estranho que possa parecer ao homem actual, crente de que os seus amigos pululam por tudo quanto é sítio, nunca a humanidade experimentou semelhantes índices de isolamento, semelhantes vislumbres de ludíbrio. E a amizade é uma quimera.
Gostaríamos de amar os outros e muitas vezes julgamos sentir amor e outras tantas parece-nos que o amor nos encontrou, vindo de outrem. Porém, isso a que ingenua ou credulamente chamamos amor não passa de um simulacro. Porque os homens estão sós.
Relembro Camus e a citação do seu livro “A Queda” na qual tanto sentido descubro e noto que, de outra maneira, as suas palavras se articulam com o texto de Nietzsche, em epígrafe:
“Sabe, ouvi falar de um homem cujo amigo tinha sido preso e que todas as noites se deitava no chão do seu quarto para não gozar de um conforto de que havia sido privado aquele que ele amava. Quem, meu caro senhor, quem se deitará no chão por nós? Se eu próprio seria capaz? Escute, gostaria de ser, sê-lo-ei. Sim, seremos todos capazes, um dia, e será a salvação. Mas não é fácil, porque a amizade é distraída, ou, pelo menos, impotente. O que ela quer não pode."
Paradoxal esta atitude do amigo que dorme no chão, para, desse modo, exprimir a solidariedade com o seu amigo preso? Estranha esta sentença que diz “Sê para o teu amigo um leito duro, uma cama de campanha?”
Encontro sentido nas duas formulações: se amo alguém devo manifestar a minha adesão e, do modo que me for possível, mesmo que ele nunca venha a sabê-lo, ser companheiro da sua condição; se amo alguém devo ser dura quando o sofrimento o acossa, para que ele siga o seu caminho e se fortaleça longe da minha protecção.
É tão fácil sermos complacentes e estendermos a mão, dando aquilo que nos sobra! Mas se o nosso amigo se encosta a nós, procurando arrimo para a sua fraqueza, não deveremos expulsá-lo com veemência para que se fortaleça, nos leitos rijos e ásperos da solidão, que lhe moldarão o carácter? E se não o pudermos ajudar de nenhum modo não será nobre estar presente, mesmo de longe, e augurar um bom futuro – mesmo àquele que não nos soube amar?
Vejo caminharem por aí pares envilecidos, envenenados na suspeita e contudo dizendo: Somos amigos! Vejo hordas de solitários, caminhando em grupos, cada um submerso nas suas pequenas existências e contudo clamando: Somos amigos!
“A camaradagem existe, escreve ainda Nietzsche em Assim Falava Zaratustra, possa a amizade nascer.” Do mesmo modo, se bem que por outras palavras, Camus reitera:
“Eu aprendi a contentar-me com a simpatia. Encontra-se mais facilmente e, depois, não nos impõe nenhum compromisso. «Creia na minha simpatia», no discurso interior precede imediatamente, «e agora ocupemo-nos de outra coisa». É um sentimento de presidente do Conselho: obtém-se muito barato, depois das catástrofes. A amizade é menos simples. A sua aquisição é longa e difícil, mas, quando se obtém, já não há meio de nos desembaraçarmos dela, temos de lhe fazer frente. Sobretudo, não acredite que os seus amigos lhe telefonarão todas as noites, como deviam, para saber se não é precisamente essa a noite em que decidiu suicidar-se, ou, mais simplesmente, se não tem necessidade de companhia, se não está com vontade de sair. Oh, não, se telefonarem, esteja descansado, será na noite em que já não está só e em que a vida é bela.”
Mas, depois de citações, espero as reacções dos possíveis ouvintes (ou leitores) e percebo o constrangimento, o silêncio, o baixar de olhos (as reticências, no discurso escrito, a página vazia, as palavras vagas…)
Sei então que não há amizade, embora a palavra seja usada e abusada por todos, sei que estamos sós, absurdamente sós, num mundo atulhado de gente… e sabem porque o sei? É que quando estamos na prisão e dormimos na tábua dura, ninguém se deita em casa, no chão, por nós!
Mas, quando eu digo estas palavras, citando ainda Camus, olham-me com espanto agressivo e aí falam, para dizer: "Ora, de que é que isso serve se o amigo está preso e, dormirmos ou não no chão, não o libertará da prisão???"
Ah, esta lógica do comodismo, esta lógica cruel do nosso conforto e do direito que a ele temos, mesmo que o nosso amigo esteja em sofrimento! «A amizade é distraída, ou pelo menos impotente; o que ela quer não pode.» É isso, está claro, primeiro estamos nós e os nossos confortozinhos pessoais, depois estamos nós e os nossos problemazinhos pessoais e, quando podemos libertar-nos um pouco de nós próprios, já é tarde: porque entretanto o amigo, por quem não nos deitámos no chão quando esteve na prisão, a quem não telefonámos todas as noites, só para lhe perguntarmos se estava bem, se não era exactamente naquele dia que ele pretendia suicidar-se, saiu da prisão e reencontrou o seu caminho ou deu um tiro na cabeça e já não precisa de ninguém! E nós, nem sequer admitimos que fomos responsáveis pela dureza da tarimba do prisioneiro, pela dor solitária do suicida. Mas fomos!!!
Por isso, não me venham falar em amizade, quando o máximo de que sois capazes é de uma simpatia ténue que a nada obriga, não me venham falar de amizade quando o máximo de que sois capazes é de uma rosa virtual numa página dura, sem rosto humano!
Citações contraditórias, estas, em que sigo Nietzsche, dizendo que temos que ser duros, se somos amigos, e depois Camus que afirma termos que nos deitar no chão pelos amigos, se efectivamente o formos?
Escavem fundo, que o sentido dos textos que escrevemos para os outros está no que persiste para lá da nossa palavra: sem dúvida, lá bem no âmago, percebereis o que quis hoje dizer-vos.