PEDRO PEREIRA (1999-2014) |
A morte é a
maior evidência que temos da vida. Não há maior evidência do que ver um corpo
inerte num caixão.
E retomar o
quotidiano, para os que ficam, é um processo anestesiado, lento e difícil.
O Pedro deixou-nos.
Foram dois anos de uma intensa e incansável luta. E infrutífera. Deixou de ir à
escola, deixou de lidar directamente com os amigos, com os professores, com a
sua comunidade. Foi o centro de todas as atenções familiares. Durante a maior
parte do tempo, esteve internado. Dois anos de intenso sofrimento. E a
morte.
Com saúde
podemos ter tanta coisa! E ser.
A doença mina
tudo em volta, corrompe, agasta, desgasta. A família do Pedro desgastou-se, incansável
no acompanhamento, firme na luta, desmedida na esperança. Todos se rodearam de
uma esperança assombrosa. Todos acreditavam na cura do Pedro.
E naquele
assombro, as rotinas familiares alteraram-se. As despesas aumentaram, ficou
reduzido o orçamento familiar. As rotinas dos pais tornaram-se um combate sem
precedentes nas suas vidas, sem baixar os braços, sem mostrar o desânimo
interior. E no entanto, o cansaço extremo a sulcar anos de vida nos seus rostos.
E no entanto, um medo tão grande, apressado, a arrebatar o mais profundo
acalento daquelas almas paternais. Há mais dois filhos: uma senhora-menina e um gémeo do Pedro. Há esses
dois filhos cujas vidas foram também inevitavelmente alteradas, mas que não
podem parar. As vidas, se cá andamos a vivê-las, não param. Dão-nos bofetadas,
deitam-nos ao chão, esgotam-nos as lágrimas, puxam-nos ódios e revoltas,
tiram-nos as forças até ao limite de não nos sentirmos capazes de continuar vivê-las.
Mas aqui talvez não fique a despropósito citar uma frase de Isabel Allende: "Temos dentro de nós, uma reserva insuspeita
de força que surge quando a vida nos põe à prova". E com essa força
que crescia do Pedro e pelo Pedro, a vida foi continuando, assim, naquele
espanto de viver um dia de cada vez, à espera do que se reservasse impor-lhes a
esperança.
Mas o que
pensar? Como conter a revolta e a inconformidade de nos tirarem assim um menino
que tínhamos garantido como nosso? Como, mãe bendita? Como, pai louvado? Irmãos
venturosos? Familiares, amigos, vizinhos dedicados? Como?
Pedro:
Volteavas e
revolteavas, como pássaro que nunca poisasse. Braços abertos, cabeça erguida,
corrias em revoadas descontroladas, sorrisos e gargalhadas a ecoarem pelo ar
fora. Não eras apenas um pássaro, éreis dois pássaros, tu e o teu irmão gémeo,
cópias exactas naquele revoar todo, naqueles sorrisos permanentes, gargalhadas
a ecoarem pelo ar sem fim. Era difícil saber quem seguia quem, como se fossem
um só pássaro. E tudo sincronizado, como numa coreografia. Braços abertos, cabeças
erguidas, risos e gargalhadas.
A cerimónia
decorria, uma cerimónia encantadora e comovente, como tu merecias, Pedro. As
cordas do violino tangiam vozes indecifráveis como as dos anjos e os cânticos
enchiam o templo todo numa homenagem que se queria perpetuar, nossa para ti. E
os linhos do caixão estremeciam, como asas, à mais pequenina aragem. E tu
estavas ali com o teu sorriso. Estavas a querer voar, como pássaro que nunca
poisasse.
Nós num choro
inconsolável. E o teu sorriso. E as asas do teu caixão.
Pássaro que nunca poisasse:
Há quem acredite
que cada ser humano vem ao mundo com um uma missão (agora, dá-me tanto jeito
acreditar nisso!). Se assim for, Pedro, não tenho dúvidas de que a tua foi
ensinar-nos a sorrir. Na alegria. Na dor. Na morte.
*Pedro Pereira
(1999-2014)
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