quinta-feira, 6 de novembro de 2014

PEDRO. COMO PÁSSARO QUE NUNCA POISASSE

PEDRO PEREIRA (1999-2014)
A morte é fria. E silenciosa. Não há calor na morte.
ANABELA BORGES

A morte é a maior evidência que temos da vida. Não há maior evidência do que ver um corpo inerte num caixão.
E retomar o quotidiano, para os que ficam, é um processo anestesiado, lento e difícil.

O Pedro deixou-nos. Foram dois anos de uma intensa e incansável luta. E infrutífera. Deixou de ir à escola, deixou de lidar directamente com os amigos, com os professores, com a sua comunidade. Foi o centro de todas as atenções familiares. Durante a maior parte do tempo, esteve internado. Dois anos de intenso sofrimento. E a morte. 
Com saúde podemos ter tanta coisa! E ser.
A doença mina tudo em volta, corrompe, agasta, desgasta. A família do Pedro desgastou-se, incansável no acompanhamento, firme na luta, desmedida na esperança. Todos se rodearam de uma esperança assombrosa. Todos acreditavam na cura do Pedro.
E naquele assombro, as rotinas familiares alteraram-se. As despesas aumentaram, ficou reduzido o orçamento familiar. As rotinas dos pais tornaram-se um combate sem precedentes nas suas vidas, sem baixar os braços, sem mostrar o desânimo interior. E no entanto, o cansaço extremo a sulcar anos de vida nos seus rostos. E no entanto, um medo tão grande, apressado, a arrebatar o mais profundo acalento daquelas almas paternais. Há mais dois filhos: uma senhora-menina e um gémeo do Pedro. Há esses dois filhos cujas vidas foram também inevitavelmente alteradas, mas que não podem parar. As vidas, se cá andamos a vivê-las, não param. Dão-nos bofetadas, deitam-nos ao chão, esgotam-nos as lágrimas, puxam-nos ódios e revoltas, tiram-nos as forças até ao limite de não nos sentirmos capazes de continuar vivê-las. Mas aqui talvez não fique a despropósito citar uma frase de Isabel Allende: "Temos dentro de nós, uma reserva insuspeita de força que surge quando a vida nos põe à prova". E com essa força que crescia do Pedro e pelo Pedro, a vida foi continuando, assim, naquele espanto de viver um dia de cada vez, à espera do que se reservasse impor-lhes a esperança.   

Mas o que pensar? Como conter a revolta e a inconformidade de nos tirarem assim um menino que tínhamos garantido como nosso? Como, mãe bendita? Como, pai louvado? Irmãos venturosos? Familiares, amigos, vizinhos dedicados? Como?

Pedro:
Volteavas e revolteavas, como pássaro que nunca poisasse. Braços abertos, cabeça erguida, corrias em revoadas descontroladas, sorrisos e gargalhadas a ecoarem pelo ar fora. Não eras apenas um pássaro, éreis dois pássaros, tu e o teu irmão gémeo, cópias exactas naquele revoar todo, naqueles sorrisos permanentes, gargalhadas a ecoarem pelo ar sem fim. Era difícil saber quem seguia quem, como se fossem um só pássaro. E tudo sincronizado, como numa coreografia. Braços abertos, cabeças erguidas, risos e gargalhadas.
  
A cerimónia decorria, uma cerimónia encantadora e comovente, como tu merecias, Pedro. As cordas do violino tangiam vozes indecifráveis como as dos anjos e os cânticos enchiam o templo todo numa homenagem que se queria perpetuar, nossa para ti. E os linhos do caixão estremeciam, como asas, à mais pequenina aragem. E tu estavas ali com o teu sorriso. Estavas a querer voar, como pássaro que nunca poisasse.
Nós num choro inconsolável. E o teu sorriso. E as asas do teu caixão.  

Pássaro que nunca poisasse:
Há quem acredite que cada ser humano vem ao mundo com um uma missão (agora, dá-me tanto jeito acreditar nisso!). Se assim for, Pedro, não tenho dúvidas de que a tua foi ensinar-nos a sorrir. Na alegria. Na dor. Na morte.


*Pedro Pereira (1999-2014)

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