terça-feira, 4 de novembro de 2014

A FÓRMULA DO MUNDO PERFEITO

REGINA SARDOEIRA
A fórmula do mundo perfeito é simples e, ao desdobrá-la, vamos encontrando as diversas vertentes da actuação que nos tornariam uma humanidade digna da prerrogativa racional que andamos a reclamar há milénios.

A cada um segundo as suas capacidades, a todos segundo as suas necessidades, é uma dessas sentenças: linear, transparente, sem nenhuma armadilha verbal ou de conteúdo implícito, se alguém ousasse pô-la em prática nada mais seria necessário para o equilíbrio dos homens. Reparem: envolvido no mundo, ao nível da sobrevivência física, envolvido na sociedade ao nível da sobrevivência psicológica, o homem é um ser complexo, mas não tanto quanto querem fazê-lo acreditar. Simultaneamente indivíduo – e eis o «cada um» – e componente intrínseca de um «todo», somos, enquanto homens, este jogo contínuo e dialéctico entre o individual e o colectivo, o cada um e o todo. A síntese está, por inteiro, nesta citação de um texto de Karl Marx e se, à partida, pode conotar-se com uma análise economicista e logo de mercado, imediatamente adquire os contornos do mais justo e equilibrado dos humanismos.

O mundo em que vivemos foi engendrado na troca, pela mediação monetária, e então o aferidor, em última análise, do nosso valor, enquanto participantes nesta sociedade de mercado, é o dinheiro, a retribuição, o ganho . Não é possível estabelecer, com rigor, a correspondência entre o trabalho e a remuneração, entre a remuneração e a necessidade, entre a necessidade e o indivíduo, entre os indivíduos e as capacidades. O trabalho, alienado porque afastado do seu fim efectivo – a satisfação de necessidades – engendrou uma escala remunerativa, aceite por todos e contudo absolutamente heterogénea face ao verdadeiro esforço dispendido, à dificuldade nele presente, ao risco que dali pode advir. Levemos em conta, por exemplo, o homem de recolha do lixo. Quando vamos na rua e somos agredidos pelo odor pestilento de milhares de detritos em simbiose, o mais certo é tentarmos ultrapassar o camião nauseabundo, afastando-nos o mais possível daquilo que, de facto, representa um pedaço substancial da nossa própria vida. Raramente pensamos que aqueles trabalhadores fazem, por nós, um serviço inestimável, privam-nos dos nossos desperdícios, afastam, do nosso nariz e da nossa sensibilidade por inteiro, aquilo que alijamos de nós porque a nossa higiene privada não pode consenti-lo. Sem nos darmos conta disso, desprezamos o trabalhador da recolha do lixo, incomodamo-nos quando somos forçados a interromper a nossa viagem, por causa das paragens a que o seu trabalho específico obriga. Qual de nós pensou, uma vez que fosse, que eles, esses homens e mulheres que diariamente aspiram o odor nauseante dos nossos desperdícios, prestam um serviço, de tal modo vital e de tal modo arriscado – vital, para nós, que não poderíamos viver se acaso eles não cumprissem a sua função quotidiana, arriscado, porque aspiram, quotidianamente, as mais nauseabundas e deletérias emanações -, mereciam o escalão máximo da remuneração, o lugar cimeiro das honrarias sociais? Exagero meu? Pensem um pouco, imaginem a vossa cidade, essa mesma por onde passeais, impantes, homens de negócios, assessores, ministros, intelectuais, funcionários, etc., imaginai-a sem eles, essas toupeiras que, pela noite, vos param à porta e retiram o desperdício para longe do vosso nariz…Conseguiríeis habitar numa cidade privada deste serviço nauseabundo e nauseante? E contudo, do alto das vossas cátedras, do fundo do ambiente asséptico dos vossos escritórios, no âmago do silêncio com que vos dedicais a tarefas que considerais nobres, crentes de que sois dignos das benesses que tais tarefas vos outorgam ( benesses remuneratórias, entenda-se!), nem vos passa pela cabeça que, sem eles, o estatuto que tendes cairia inevitavelmente! Apliquemos então a frase de Marx: «a cada um segundo as suas capacidades» e pensemos, cada um para si próprio - seria eu capaz de trocar, por uma noite, com o homem do lixo e fazer o giro execrável? Seria eu capaz de trocar o meu gabinete, a minha cátedra por semelhante profissão que, vendo bem, é das mais úteis, do ponto de vista civilizacional a que chegamos? 

E agora, façamos um novo desvio do nosso conforto de gente acertada, e imaginemo-nos, por uns instantes, aquele homem privado de membros que nos olha e interpela no passeio que pisamos com determinação a caminho do nosso trabalho, que nos pede a esmola, a possibilidade de comer, que muitas vezes mais não querem estes seres da margem. Incomodados, desviando o olhar das chagas e da miséria, atiramos-lhes a moeda que nos sobra e continuamos caminhando, quem sabe indignados, porque aquela visão nos empanou o orgulho… mas agora pensai: «a todos segundo as suas necessidades»… não deveria este estropiado, e, ainda por cima, mendigo, ter todas as suas necessidades resolvidas? Não deveria a sociedade em que vivemos, eu e vós todos, permitir que estes e muitos outros, escondidos nas suas casas, fechados em hospícios, condenados a uma subhumanidade, ver as suas necessidades satisfeitas, mesmo não tendo a capacidade para o trabalho que a nós , os capazes, vai permitindo um pouco mais do que a sobrevivência?

Casos extremos, dir-me-ão, excepções, afirmarão. E volto a perguntar? Serão mesmo casos extremos, excepções? Não estará, de facto, absolutamente pervertido o jogo humano das capacidades e das necessidades, do trabalho e da remuneração?

A cada um segundo as suas capacidades, meditem nesta frase, vejam bem do que são capazes, estes e outros trabalhadores ignorados e quantas vezes considerados incómodos e desprezíveis, capazes daquilo de que qualquer um de nós nem sequer suspeita ou, se acaso toma consciência de um gesto, de um momento, é para passar adiante porque o mundo é mesmo assim e alguém terá que realizar o trabalho sujo: a todos segundo as suas necessidades, meditem nesta outra sentença, corolário da primeira, e, contudo, de alcance distinto, pois mesmo aquele que, uma vez vivo, uma vez humano, ainda que privado de autonomia ou de capacidade de produção económica, merece a satisfação das suas necessidades intrínsecas.

O nosso mundo, este que dizemos ser desenvolvido, no cume da evolução humana ou humanista, engendrou estes males, todos os que os meus exemplos podem fazer subir à consciência; institucionalizou a desigualdade e a injustiça, assentes em tabelas remuneratórias forjadas na ignorância suprema das capacidades e das necessidades; e depois, inventou a solidariedade, esse anti-valor, símbolo da degradação do nosso tempo, porque tendo uma possível conotação positiva representa a ocultação quotidiana da miséria, o lançar um manto de benevolência tardia sobre a pobreza instalada em todos os seus graus.

E então, essa fórmula esquecida do mundo perfeito, essa sentença engendrada a partir de uma análise rigorosa de um tempo em que os males de hoje estavam anunciados, ganha um espaço e uma actualidade gritantes porque, não tenhamos dúvidas: só haverá equilíbrio social, e logo humano, quando A CADA UM FOR DADO SEGUNDO AS SUAS CAPACIDADES E A TODOS SEGUNDO A SUAS NECESSIDADES.

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