REGINA SARDOEIRA |
José Saramago escreveu dois livros intitulados, respetivamente, “Ensaio sobre a Cegueira” (1995) e “Ensaio sobre a Lucidez” (2004); e serão estas duas obras literárias, de alto calibre, os guias da minha crónica de hoje.
No primeiro, uma epidemia de cegueira branca, um vírus desconhecido e altamente contagioso, acomete todos os habitantes de um certo país sem nome. Logo que é dado o alerta, os infetados são arrastados para uma ala de um manicómio abandonado, entregues a si próprios, enquanto outros, ainda não declarados doentes, de facto, mas potencialmente contagiados, são enviados para a outra ala. Os alimentos eram-lhes atirados por cima do portão, mas nenhum dos cegos poderia aproximar-se, a partir de uma certa marca, sob pena de ser abatido a tiro.
No meio dessa horda de cegos, caminhando às apalpadelas, pelos corredores do manicómio desativado, deslocava-se também uma mulher que, apesar de ser a companheira de um dos primeiros infetados, manteve a visão. Porém, querendo acompanhar o marido, crendo que, mais tarde ou mais cedo, chegaria a sua vez de cegar, fingiu, também ela, ter sido apanhada pela doença e, continuando a fingir que estava cega, tal como os outros, pôde testemunhar as ignomínias, os sofrimentos, os horrores, de tal modo descritos pelo insigne escritor, que a simples leitura do livro provoca um enorme sofrimento e uma sensação abominável de repugnância, como se nós próprios partilhássemos, com os cegos, aquela tremenda odisseia.
Aos poucos, todos cegam, naquele território nunca nomeado, e os internados só o descobrem porque deixam de lhes levar o alimento e eles percebem que podem sair, porque já ninguém exerce vigilância ou os inibe de transpor o portão. A custo, embora guiados pela única testemunha, percebem o absoluto caos instalado nas ruas, nos armazéns saqueados, nas instituições públicas abandonadas, tomam consciência de que o mundo, tal como o conheciam, antes de cegarem, já não existe.
Depois e bruscamente, o primeiro indivíduo que havia cegado, recupera a vista e, progressivamente, a epidemia dissolve-se, tal como havia começado.
No segundo livro, publicado nove anos depois, Saramago cria nova situação, também ela a decorrer num local sem nome: numas certas eleições municipais, uma inusitada abstenção às urnas, faz tremer os líderes partidários. No entanto, ao fim do dia, milhares de pessoas saem de casa, dirigem-se às assembleias de voto e exercem o seu direito. Porém, o inédito acontece; e, quando são contados os votos, verifica-se que mais de 70% dos eleitores votaram em branco. Alucinados, os dirigentes decidem marcar outras eleições; e novamente o voto branco ganha, atingindo, desta vez, os 80%. Tal como acontecera em “O Ensaio Sobre a Cegueira”, o caos instala-se e, sem saberem o que fazer, os dirigentes prendem cidadãos, cometem atos de uma demência espantosa e acabam por abandonar o país, deixando os cidadãos entregues a si próprios.
Os demais pormenores não são pertinentes neste meu contexto: o que me move é a simbologia da cegueira e da lucidez, plasmadas num país cujos habitantes cegam, na sua totalidade; e, no final dessa crise de cegueira, que destrói tudo o que existia o voto em branco surge como ato lúcido, tácito – ninguém combina, ninguém se reúne para tomar a decisão – de cidadãos que, pelo seu gesto coletivo, afastam os governantes, impotentes e desvairados, perpetradores de crimes, criando culpados para o acontecimento, mas abandonando, por fim, o povo a si mesmo.
Em 1995, Saramago sabia que a democracia havia falido e deu-nos esta saga terrível, esta metáfora alucinante, onde os horrores da decadência de uma ordem estabelecida são levados ao extremo. Decerto, ele queria denunciar os abusos, as corrupções, as fraudes, o excesso de poder e tudo o que, já na época, era a marca da política que nos governa; e queria também que os portugueses o lessem e percebessem que haviam sido acometidos de cegueira, sem saber porquê; e que, quando despertassem dessa espécie de olvido, encontrariam um caos que necessitariam de erguer com as próprias mãos.
Foi-lhe atribuído o Premio Nobel, na sequência dessa obra magistral e pungente, o mundo tomou conhecimento da clarividência do genial escritor: mas os portugueses não tiveram olhos para se verem naquele livro que era, exatamente, o seu espelho.
E a destruição do país, levada a cabo pelos conluios governamentais, prosseguiu, enquanto o povo ia elegendo e voltando a eleger, em absoluta cegueira coletiva e altamente contagiosa, novos carrascos, novos delapidadores.
“O Ensaio Sobre a Cegueira” não dá soluções: mostra o trajeto destrutivo de uma sociedade alienada, rumo à sua própria condenação; “O Ensaio Sobre a Lucidez” apresenta, com toda a objetividade, o que deve ser feito, quando chegar a hora dos votos, para pôr em debandada uma horda de usurpadores, restituindo ao povo a sua dignidade.
José Saramago viu, em 1995 e depois, que o seu livro, clarividente, mas também clarificador do descalabro de um povo, no ápice de uma cegueira branca, turva, leitosa, não demoveu os seus compatriotas do vício da eleição dos seus próprios carrascos; e, em 2004, com crueldade perante si mesmo e pelas suas crenças, querendo ser cruel para com aqueles que desejava alertar, apresentou a receita salvadora. «Não lhes deem de novo o poder, saiam de casa, se quiserem, vão às urnas, mas atirem-lhes à cara com o branco do vosso voto!» - foi esse o grito contido do autor, nas páginas da lucidez.
Mas os portugueses não leram, não ouviram, encolheram os ombros, porque, afinal, aqueles livros são romances, e logo ficções, que não podem ser levados ao pé da letra!
E continuaram a ir, obstinadamente, à mesa dos votos, elegendo uns e destronando outros, para a seguir, elegerem os que destronaram antes!
Já passaram 10 anos desde que “O Ensaio Sobre a Lucidez” foi publicado, e ele continha a solução para ser aplicada logo…uma vez que já haviam passado 14 desde que “O Ensaio Sobre a Cegueira” mostrara a decadência horrível de um mundo auto ludibriado.
A democracia tem esta caraterística peculiar: como é o governo do povo e, no ato de eleger, se escolhem os representantes, para servirem os interesses de todos, quando o sistema falha, falhamos nós também! Ora, se fomos nós os causadores da nossa própria tragédia, elegendo os nossos próprios carrascos, apenas nós poderemos ser os autores da nossa própria libertação, não elegendo ninguém e tomando nas próprias mãos o poder que delegamos em quem – está provado à saciedade! – nunca o mereceu, nunca o honrou.
Se Saramago não vos convence, se a leitura destes dois romances, muito intencionalmente designados como “ensaios”, não é o que vos interessa fazer neste momento, ao menos abri os olhos, afastai as cataratas que vos têm acometido há décadas, na hora em que insistis em acreditar nos presumíveis salvadores, e lhes dais autoridade, através do voto, salvai-vos a vós próprios, tomai nas mãos o vosso destino e fazei-o, tão cedo quanto possível…porque o caos está instalado há muito, e estais a ver, agora mesmo, o levantar das pontas do véu que o tem coberto.
E termino, não citando Saramago, mas o livro que, há muitos anos, adotei, como uma espécie de Bíblia:
“O
espírito, como a virtude, cem vezes se perdeu e iludiu até ao dia de hoje. Ai
de mim! todas essas loucuras e ilusões habitam ainda o nosso corpo; e eis que
se fizeram corpo e vontade.
O espírito,
e a virtude com ele, de cem modos diferentes se perderam até ao dia de hoje. O
homem não passa, ele próprio, de um esboço. Ai de mim! quanta ignorância,
quanto erro se encarnaram em nós!
Não é
apenas a razão dos séculos mas também a sua loucura que em nós se manifesta.
Como é perigoso ser o detentor de uma herança! Lutamos ainda, frente a frente,
contra o gigante Acaso; sobre toda a humanidade reinou até ao dia de hoje a
insensatez, o absurdo.
Que o vosso
espírito e a vossa virtude, meus irmãos, sirvam o sentido da terra; pesai de
novo o valor de todas as coisas. Para tal devereis combater. Para tal devereis
criar.
O corpo
purifica-se pelo saber; eleva-se por tentativas conscientes; para o servidor do
conhecimento todos os instintos são sagrados; e, chegada ao cume, a alma
enche-se de alegria.
Médico,
cura-te a ti próprio; será esse o modo de curares o teu doente. A melhor cura
será mostrares-lhe um homem que se curou a si próprio.
Há ainda
mil caminhos que ninguém pisou, mil fontes de saúde, centenas de secretas ilhas
da vida. Ainda se não esgotou nem descobriu o próprio homem, nem a terra do
homem.”
Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra , Editorial
Presença (página 83)
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