Evocar hoje o Muro de Berlim, evocar hoje o Derrube do Muro de Berlim não passa de um pretexto para outras digressões especulativas. Se assim falo é na exacta medida em que o nosso mundo vive de efemérides e uma efeméride não é mais do que uma recordação descontextualizada de fenómenos cuja especificidade já não é possível entender cabalmente. Os documentários, filmes e exposições sobre o evento têm sido a nota dominante dos últimos dias, pelo que será desnecessário aludir às circunstâncias históricas e políticas que determinaram a construção do Muro em 1961 e que conduziram ao seu derrube 48 anos depois, há vinte e cinco anos, portanto. Circunstâncias históricas e políticas: é preciso não esquecer. Circunstâncias que estavam presentes em 1961 e que, quase cinco décadas depois, subitamente, deixaram de fazer sentido: porque o Muro de Berlim caiu, aparentemente, por si mesmo, sem convulsões, sem luta. A História é isto mesmo: um ciclo racional engendrado pelas necessidades ou pelos desejos ou pela insanidade dos povos, uma espiral dialéctica em que as contradições, submersas em períodos mais ou menos longos de aparente estabilidade, se enunciam de súbito provocando revoluções, guerras, chacinas, atentados e discórdias de todos os géneros. Poderíamos dizer que tais momentos deveriam ser evitados, poderíamos lamentar os períodos sangrentos de hostilidade e de luta fratricida, poderíamos mesmo desejar a utopia da paz perpétua, a lenda da confraternização universal. E contudo os milénios transcorridos da história dos homens atestam, com evidência plena, a inevitabilidade da guerra, da revolução, da luta ao mesmo tempo que demonstram a sua necessidade em prol da evolução.
A guerra é então uma necessidade, uma condição de progresso? A guerra não pode ser suprimida sob pena de assistirmos à inevitável degeneração dos povos, ao seu declínio e estagnação? Não responderei a tal questão porque as evidências estão aí, hoje, como na antiguidade, hoje, como no contexto das duas grandes guerras mundiais, hoje, como num futuro próximo, em que o homem terá que combater o homem, terá que combater-se a si mesmo, portanto, para poder erguer-se e suportar-se enquanto homem.
Entretanto, os muros construídos e a construir, os muros abatidos e a abater representaram e representam ocasião de defesa de princípios, de ideais, de sensibilidades – o muro é uma parede levantada atrás da qual nos protegemos e nenhuma habitação humana se manteria erguida sem semelhantes suportes – mas o muro é simultaneamente a barreira que impede o devassar da intimidade, a dissolução dos princípios, a quebra dos ideais, o prejuízo das sensibilidades. E por muito que queiramos hoje olhar o Muro de Berlim como a imagem macabra de um ultraje aos direitos humanos, à lógica civilizacional, à sensatez, por muito que aludamos à construção e manutenção do Muro de Berlim como sendo um atentado à liberdade e à livre circulação dos povos, o certo é que não temos outro remédio senão justificá-lo, à luz da circunstância que o engendrou. E será esse o caminho inicial que seguirei nesta exposição.
Na época que marcou a construção do Muro de Berlim, uma dicotomia politica atravessava a Europa: do lado ocidental, e após os tratados decorrentes do final da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo e os regimes, designados como democráticos, firmaram-se, gerando uma economia de mercado centrada no consumismo, na ostentação, na busca de riqueza e prosperidade económicas e onde se desfraldava a bandeira enganosa da liberdade, segundo a qual a oportunidade de viver bem era uma premissa a todos possível. Basta, contudo, lançar os olhos sobre as condições que permitiram o desenvolvimento do mundo capitalista para percebermos que nelas esteve sempre implícita a exploração do homem pelo homem, a fabricação da pobreza de muitos, como condição do enriquecimento de alguns. Era assim em 1961, quando o muro foi construído em Berlim e o ocidente se atirava para a escalada do capitalismo, suportado politicamente por regimes democráticos, capazes de criarem nos povos a ilusão de que podiam sempre lutar em liberdade pela riqueza, pelo conforto, por tudo o que parecia ser, segundo o modelo capitalista o melhor dos bens, e contudo sempre afastados dessa meta; e continua a ser assim, hoje em dia, quando o capitalismo emerge desenfreadamente e as franjas de pobreza e de miséria são cada vez mais palpáveis e cada vez mais atingem núcleos sociais, antes preservados. A pobreza alargou-se, portanto, e foi o capitalismo que possibilitou semelhante alargamento, para se poder manter, enquanto tal. Por outro lado, a parte oriental da Europa, delimitada pelo Muro de Berlim, quis destacar-se dessa onda de materialismo e de desumanidade, estribada num ideal humanista cujos princípios visavam a supressão das classes sociais baseadas no poder económico, o desenvolvimento de condições sociais capazes de dotarem todos, de modo equilibrado, de condições básicas de sobrevivência digna e de, para além da busca de bens de consumo, criar uma sociedade propiciadora de valores humanos, culturais, artísticos em que o homem pudesse erguer a sua verdadeira face. «O livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos» e esta máxima do pensamento prático de Marx e Engels congrega em si, de modo simples, toda a articulação social e política necessária para erguer o verdadeiro mundo dos homens.
Na sociedade capitalista o livre desenvolvimento de uns – a minoria – é condição para a escravização dos outros – a maioria - e esta máxima tem valor recíproco, pois a minoria só se ergue, economicamente, à custa da degradação da maioria. Foi assim no início da escalada capitalista, é assim no tempo que vivemos agora. E foi por isso que se ergueu o Muro de Berlim. Era necessário preservar um conjunto de grupos sociais capazes de porem de pé um mundo, no contexto do qual as desigualdades económicas se esbatessem a tal ponto que o verdadeiro homem pudesse nascer, desenvolvendo, de facto, os valores intrinsecamente humanos que não são económicos, que não são materiais, que não se medem pelo Ter, mas pelo Ser. À semelhança dos pais que protegem os seus filhos, enquanto crianças, nos limites de um espaço dentro do qual não lhes chegue a violência do mundo exterior, os perigos e as derrocadas do tempo adulto para o qual não estão preparados, enquanto crianças, também foi necessário erguer uma barreira para que a utopia, ainda impúbere, de uma sociedade justa e digna pudesse desenvolver-se arredada das tentações perigosas de um jogo de poder pernicioso e desumano. Aquele Muro, chamado da Vergonha pelos ocidentais, aquele Muro erguido no meio da cidade de Berlim, policiado e interditador da circulação livre foi o símbolo da protecção de um modelo de sociedade que, a desenvolver-se harmoniosamente, a estender-se gradualmente aos restantes países teria poder para pôr em prática a máxima de Marx e Engels citada antes. No momento em que os povos do Leste da Europa tivessem aderido à nova imagem do homem, dando de si testemunho ao resto do mundo, no momento em que a exploração do homem pelo homem, a abolição das classes, o respeito pela diferença e o estabelecimento da igualdade de direitos e de deveres prenunciasse uma nova etapa para o mundo humano, o muro poderia ir abaixo – à semelhança do que fazem os pais quando os filhos crescem e eles percebem que podem dá-los por inteiro à liberdade e à auto-determinação.
Sendo assim, que foi que correu mal, para que o Muro de Berlim se transformasse num sinal de repressão e de violência, de atentados às vidas e aos direitos daqueles que queria proteger? O que foi que não se cumpriu, do lado oriental da Europa, para que o descontentamento dos povos, aí confinados, almejasse pelas benesses da sociedade, aparentemente triunfal, do ocidente? O que foi que falhou no passar à prática da máxima de Marx e Engels, para que os povos da Europa de Leste rompessem a fronteira que o Muro fixava e tentassem fugir, arriscando a vida, para o outro lado do mundo?
Uma vez mais não irei recorrer aos circunstancialismos históricos, datados e contextualizados, porque eles estão todos aí em manuais, documentários e filmes e darei, em vez disso, a resposta simples, nua e crua como são todas as respostas verdadeiras, dá-la-ei sem contemplações para que conste, para que possa ser alvo de reflexão – se acaso houver ainda disponibilidade para reflectir com autonomia.
O homem corrompe a pureza dos ideais engendrados de boa-fé, o homem ilude e ilude-se uma e muitas vezes, e julgando semear trigo deixa crescer o joio, o homem constrói o ninho e depois, esquecido que esse ninho é a sua morada, suja-o, quebra-o, torna-o gradualmente inabitável. Foi assim que a Europa de Leste, abrigada pela fortaleza do Muro, se foi degenerando, enquanto, aparentemente, o mundo ocidental desabrochava num esplendor feito de cintilações enganosas – mas nem por isso menos incandescentes. A corrupção ocidental estava disfarçada com as cores poderosas do consumismo alienante, mas encantador; a corrupção oriental tinha um sabor amargo, era cinzenta e apagada e os povos, para além do muro, pareciam a imagem pálida do mundo policromático divisado, a espaços, pelas frinchas, apesar de tudo abertas para o outro lado.
Por isso, naquele dia 9 de Novembro de 1989, abrir o muro e derrubá-lo foi ocasião de festa; e os povos de Leste respiraram, por fim, o ar que lhes havia sido retirado durante décadas e sentiram que eram livres, sentiram que, doravante, os privilégios, as ousadias, os luxos e as aventuras do ocidente também lhes seriam permitidos e que, desse modo, seriam cidadãos completos!
Vinte e cinco anos passaram, desde então. Poderemos afirmar, com verdade, que derrubar o Muro de Berlim e atravessá-lo foi, efectivamente, a ocasião de encontro daqueles povos consigo mesmos? Poderemos afirmar, com verdade, que hoje os homens e mulheres da Europa de Leste, apresentados à sociedade de consumo e nela imbuídos de corpo e alma, são mais autenticamente humanos do que o foram à sombra ignominiosa da parede que derrubaram? Uma vez mais não responderei a semelhantes questões: as evidências andam por aí e também esses homens, essas mulheres e essas crianças; encontramo-los um pouco por todo o lado – às evidências e aos homens – e basta querermos reflectir e ponderar para darmos a resposta, nem que seja apenas de nós para nós mesmos.
Evidentemente que uma sociedade adulta e razoável não deveria necessitar de muros para fazer vingar os seus ideais. Evidentemente que um mundo, onde todos são semelhantes na sua comum humanidade, deveria escancarar todas as portas e deixar entrar e frutificar e crescer em pleno todos e cada um. Evidentemente que os muros, construídos, objectiva e concretamente, enquanto barreiras físicas, e os outros todos que, oriundos das nossas defesas psicológicas nos isolam dos outros homens, deveriam ser derrubados, para que a concórdia e a autenticidade fossem possíveis.
Não nos iludamos porém: caído o Muro de Berlim, outros se ergueram, provavelmente mais vexatórios ainda, provavelmente mais destituídos de sentido e as evidências históricas e documentais estão aí para atestar a sua existência; quanto aos muros psicológicos, às barreiras comunicacionais de homem para homem, às fortalezas erigidas por cada um na desconfiança perante o outro, nunca, como hoje, eles representaram tão agudamente a evidência palpável dos muros que urge derrubar.
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